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Por Victoria Franco Edição #60

De longe

Conflitos entre práticas ancestrais e políticas de preservação ambiental em comunidades quilombolas do Vale do Ribeira

Saio de São Paulo em direção a Eldorado pela Régis Bittencourt. Nas quatro horas de viagem, alterno meu olhar entre folhas cruas de um bloco de notas e ao que a janela do carro me permite ver. Monotonia pura. Não arrisco estimar o número de bananeiras que vejo, até porque chega um ponto em que meu olhar não as alcança mais – são muitas.

Ivo Santos Rosa de 51 anos, morador do Quilombo Sapatu, conta sobre os aviões de empresas agrícolas que sobrevoam o Vale do Ribeira para pulverizar químicos na imensidão de bananais. A fala de Ivo evoca protesto e logo traz uma lembrança pungente: foi muita luta para que as crianças da escola da comunidade de Poça, engolida pelo avanço dos latifundiários bananeiros em direção a territórios originalmente quilombolas, não ficassem expostas aos químicos durante as refeições ao ar livre no colégio. Uma medida foi tomada para acalmar as manifestações de pais e famílias: em vez de lancharem com agrotóxicos sendo despejados diretamente sobre suas cabeças no pátio, foram colocadas para comer dentro das salas de aula – agora, os chamados pesticidas só percorrem um caminho minimamente mais longo para chegar até elas pelo ar. Poça fica na margem direita do Rio Ribeira de Iguape; a fonte de água das comunidades quilombolas também recebe, involuntariamente, pulverizações.

João Santos Rosa é pai de Ivo, tem 74 anos de memória coletiva – viva. Quando converso com Seu João, aceno, também seus ancestrais. A fala apressada é de quem tem muito a contar sobre o que aprendeu com os que vieram antes dele. “Quem protege a cabeceira das águas, tem água para toda vida”. É por isso que a família de Seu João não faz roça perto do rio. Se os quilombolas têm o cuidado de não derrubar a vegetação próxima ao Ribeira de Iguape para preservar suas águas e, com elas, todo um modo de vida, quem vem de fora parece ver a terra como bem a ser consumido, reforçando a hierarquia do domínio humano sobre a natureza, convencionada no chamado desenvolvimento.

Barragem não

Quando foi construída, entre 1630 e 1690, era de taipa com telha de barro. Hoje, depois da restauração, tem uma parte em alvenaria, e as travessas e telhas foram trocadas. Em 1972, foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), passando a ser reconhecida como um patrimônio social da humanidade. A Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, o mais antigo templo religioso existente no Alto Vale do Ribeira, abrigou a resistência dos ancestrais de Setembrino da Guia Marinho, de 45 anos, liderança do Quilombo de Ivaporunduva. Com o declínio da extração de ouro, os negros escravizados da região foram deixados ao abandono. Visados por outros senhores de engenho para serem levados até Minas Gerais, resistiram. “Eles não aceitaram mais viver daquele jeito, sentaram naquela Igreja e ali ficaram”. Do bar de Setembrino, vejo as costas da capela. Branca, gasta, uma escada pintada de terra se estende até nós.

Se o projeto da construção das hidrelétricas de Tijuco Alto, Funil, Itaoca e Batatal sair do papel, a Igreja de Ivaporunduva ficará submersa. Com ela, irão memórias, cultura, história, direitos e uma área total de aproximadamente 11 mil hectares que abrangem cavernas, Unidades de Conservação , territórios protegidos pelo governo, cidades, terras de quilombos e de pequenos agricultores. O turismo, fonte de renda de quilombos como o de Ivo e Setembrino, será prejudicado. O Rio Ribeira de Iguape, 470 km do mais importante corredor socioambiental do bioma Mata Atlântica, terá seu regime hídrico alterado significativamente; perderá suas nuances, cores, contrastes, e vários de seus peixes. As árvores, madeira podre debaixo d’água. Os quilombolas, refugiados de suas próprias terras.

A Companhia Brasileira de Alumínio, do Grupo Votorantim, alega a relevância do projeto para gerar energia e a empresa já gastou mais de 100 milhões de reais em projetos, audiências públicas e aquisição de terras desde que o projeto foi concedido em 1988, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica. Mas para o Instituto Socioambiental (ISA), a produção energética deste grupo será destinada a um grupo privado, o que contribuirá para que o Vale do Ribeira continue sendo fonte de enriquecimento não da população local – que permanece historicamente excluída – mas para as indústrias eletro intensivas como o complexo metalúrgico da CBA.

Em novembro deste ano, após 28 anos de idas e vindas, esse controverso projeto que a Companhia Brasileira de Alumínio queria erguer no Vale do Ribeira foi barrado pelo Ibama. Em um parecer de cinco páginas, o instituto negou o pedido de licença ambiental prévia do empreendimento. Mesmo os quilombos comemorando o cancelamento como uma vitória, continuam com medo que seja um golpe dos empresários. Para Frederico de Freitas Silva, porta-voz do ISA, o fim do Tijuco Alto veio acompanhado de uma proposta para passar as hidrelétricas de Itaoca e Funil, no Rio Ribeira, pois são projetos de pequeno porte e os protestos poderiam ser menos intensos do que os contra o Tijuco Alto.

“Nós já fomos escravos. Hoje, não somos obrigados a fazer o que não gostamos. Os nossos patrões somos nós mesmos”, conta Setembrino. Foto por Victoria Franco

Tempo da terra

Dona Marina veio de Betinho, Minas Gerais. Tem 64 anos, vive no quilombo de Nhunguara desde a década de 1990. Hoje, é coordenadora da associação do bairro e, junto com mulheres quilombolas, faz a gestão artesanal da fábrica de chips de banana verde da região. Parte do produto pode ser comprada diretamente com elas, outra é encaminhada para grandes cidades por meio da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale).

Na porta de sua casa, há uma tábua de madeira para evitar que os cachorros entrem, ela coloca uma camiseta limpa recém-dobrada como pano de chão. Meus tênis, antes brancos, estão cheios de terra. Prefiro tirá-los, embora ela insista que não seja necessário. Sento-me à mesa da cozinha, aguardo por Orlando de 62 anos, cunhado dela. “Espera um pouquinho que ele já vem”. Surpreendo-me: pisco e Seu Orlando está na minha frente. Aqui, a relação com o tempo a que estamos acostumados em São Paulo é diferente, não há interferência do trânsito ou os milhares de imprevistos. Em Iporanga, esperar um pouquinho não é eufemismo.

Seu Orlando aperta os olhos com um sorriso. Vem para contar como faz roça. Primeiro, abre espaço para o cultivo com fogo. Para evitar que o fogo se espalhe, faz o aceiro: com a foice, traça um contorno de dois metros de largura em volta da área a ser queimada. Costuma queimar o mato logo antes da chuva, assim os nutrientes penetram no solo. Tudo vai melhor se for feito na lua minguante. Depois, planta. Seu Orlando interrompe bruscamente a explicação por não ver necessidade de dizer mais sobre como, quando ou exatamente onde planta. Para quem faz roça desde os 8 anos de idade, plantar é algo muito natural, passado dos pais para os filhos e filhas. Nos quilombos, a Terra não pertence ao ser humano. Nós é que pertencemos à Terra.

Encho Seu Orlando de perguntas. Descubro que trabalham em um pedaço de terra por um ano, depois deixam a capoeira descansar e vão para outra área. O tempo é o tempo da terra. Tudo o que o chão dá, vai para a mesa. Se sobrar, encaminha para a Cooperquivale, e demora cerca de dois meses para voltar como dinheiro. Ultimamente, quase não tem sobrado. “A gente só pode plantar se o Ibama nos enviar os papéis. Senão, é multa”. Os papéis sobre o que ele fala são autorizações prévias emitidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Neles, o órgão ambiental determina que a roça seja feita em um pedaço de terra delimitado, definida de acordo com o que é melhor para o meio ambiente dentro de seus critérios, o que pode ir contra o conhecimento ancestral da comunidade, como acontece com ato de queima da vegetação baixa para começar o plantio. Os quilombolas sabem onde plantar o que, com que e em que época do ano para ter uma boa colheita. Começam a roçar em agosto. Os alimentos só são colhidos se forem plantados até novembro. É outubro, nenhum papel chegou para Seu Orlando ainda.

Dona Esperança é mãe de Ivo, nascida no Quilombo Pedro Cubas. Tem 71 anos, é conhecida por fazer uma multimistura de ervas e cereais que cura qualquer doença. Chego à Casa de Taipa e me encanto com a beleza do trabalho da senhora. É artesã e agricultora. Assim como Seu Orlando, e outros tantos agricultores quilombolas, incomoda-se com as barreiras impostas pela lei ambiental. “Eles vêm e demarcam uma área onde o arroz não vai dar sem veneno. Mas a gente não coloca. Nossa lavoura é dada com a força da terra”.

Ivo, Seu João, Setembrino, Orlando e Dona Esperança trazem no corpo uma encruzilhada histórica. A violação sistemática dos direitos dos negros atinge a todos. Seja Sapatu, Poça, Ivaporunduva, Nhunguara, Pedro Cubas, em 1690 ou 2016. Ivo olha com firmeza e diz: “Não somos remanescentes de escravos, somos escravos até hoje”. Ainda assim, resistem. Resistem, porque as memórias coletivas tecem suas relações. Os passos de Ivo, Seu João, Dona Esperança, Setembrino e Seu Orlando vêm de longe – e os fazem escolher destinos diferentes do perecimento. Pertencem.