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Por Felipe Sakamoto Edição #60

Pelo direito de ser

O preconceito e os obstáculos enfrentados por homens gays em um país onde ser homossexual é crime

Samir* estava em um táxi, na cidade de Fez, no centro de Marrocos, quando viu uma pessoa de salto alto, bolsa feminina e roupas curtas sendo agredida por três homens heterossexuais que, por considerarem a vítima um homem afeminado, resolveram fazer “justiça” com as próprias mãos. Enquanto os socos e chutes continuavam, um dos agressores gritava para que alguém chamasse a polícia, não para proteger a vítima, mas porque, no país, ser homossexual é crime.

De acordo com o artigo 489 do Código Penal marroquino de 1962, são proibidos “atos licenciosos ou contra a natureza com um indivíduo do mesmo sexo”. A punição pode variar de seis meses a três anos na prisão ou multa de 200 a mil dirhams, aproximadamente 340 reais. O islamismo é a religião oficial do Estado segundo o artigo 6° da Constituição de Marrocos. Assim, a interpretação religiosa de condenação da homossexualidade prevalece.

Contudo, em um artigo do livro Progressive Muslims: On Justice, Gender, and Pluralism, em português Muçulmanos Progressistas: sobre Justiça, Gênero e Pluralismo, o autor Scott Kugle, Doutor em História da religião pela Universidade Duke, afirma que no Alcorão não há menção à homossexualidade “Esses ‘homens que não têm necessidade de mulheres’ [descritos no Alcorão] podem ter sido gays ou assexuais, mas por definição não eram homens heterossexuais. Eles não são julgados ou condenados em parte alguma do Alcorão”, escreve.

O jovem de 22 anos, Samir*, queria pedir ao taxista que parasse o carro para poder salvar aquele que desafiou os padrões sexuais e de gênero do país. Mas temia que fosse também identificado como gay. Samir* é magro, alto, tem o cabelo raspado dos lados, e sempre bem penteado para trás. Seu olhar é forte, marcante. Diz que não parece ser gay – e evita parecer. Por medo.

Nascido no sul de Marrocos, em Agadir, o estudante de psicologia, formado em gastronomia, conta que se descobriu gay na adolescência: “Quando tinha 16 anos, senti amor por homens. Não consegui entender esse sentimento, apenas sentia que gostava mais de homens do que de mulheres”. Na família, desconfia que sua mãe saiba de sua orientação sexual, mas ela prefere não tocar no assunto. O pai saiu de casa quando tinha 10 anos, e nunca mais voltou. Somente o irmão mais velho sabe sobre a sua sexualidade. De início, não reagiu bem, mas depois aceitou. “Ele disse que tem orgulho de mim e que sempre serei o irmão caçula, não importa o que for”, conta.

Samir* é precavido e tem sorte. Em Marrakesh, Mohammed*, de 22 anos, foi expulso de casa pela família em março deste ano quando descobriram que é homossexual. Hoje, divide um apartamento com o namorado, mas para conseguir pagar as contas precisa fazer trabalhos informais e se prostituir. Existem dias em que ele passa fome. “Se sua família descobrir que você é gay, eles podem te matar, é uma vergonha ser gay nas famílias árabes”, conta Samir*.

RELACIONAMENTO E LUTA

Para gays, lésbicas e bissexuais se relacionarem no Marrocos, o caminho mais fácil parece ser a vida noturna e por meio dos aplicativos de celulares, como Tinder e Grindr. Samir* conta que existem clubes LGBT em sua cidade, frequentados também por jovens heterossexuais. A polícia, segundo ele, não fiscaliza o espaço. Porém, em Marrakesh, de acordo com o francês Gabriel*, que mora na cidade há três anos, existem bares frequentados por pessoas LGBT que depois de alguns meses sofrem pressão de moradores e das autoridades para que barrem a entrada de homossexuais. Dessa forma, os pontos de encontro não são fixos, mudam constantemente. “Você pode viajar com seu namorado para qualquer lugar e se divertir nos clubes, as pessoas vão achar que vocês são amigos, mas na verdade são um casal”, relata Samir*.

Associações e grupos buscam lutar contra a homofobia no país. O coletivo Aswat, que significa vozes, em árabe, criado em 2002, oferece suporte às mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais palestinas, via internet. A Associação Marroquina de Direitos Humanos procura anular processos contra homossexuais no país. Segundo o levantamento da ONG Kifkif, desde a independência de Marrocos, em 1956, até 2010, 5 mil homens gays foram condenados à prisão. Enquanto esse quadro não muda, o ambicioso Samir* diz que uma de suas muitas metas é ser dono e chefe de um restaurante luxuoso e moderno.

Agadir significa muralha na língua dos povos berberes do norte da África. Para as pessoas homossexuais no Marrocos, agadir é sua realidade. É preciso esconder uma parte de quem se é para sobreviver. Em diversas partes do mundo, a população LGBT precisa construir fortalezas para se defender ou esconder. Na Arábia Saudita, Irã, Iêmen, Mauritânia, Sudão e em regiões da Nigéria e da Somália, as pessoas culpadas por conduta homossexual podem ser condenadas à pena de morte. Coletivos e ONGs no mundo, como a Kifkif no Marrocos, lutam para que o preconceito não vença e essas pessoas possam viver sem medo. “Ser gay é um presente muito bonito que Deus me deu”, afirma Samir*, diversas vezes. No Brasil, apesar do direito legal a diferentes orientações sexuais, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia, em 2013, a cada 28 horas uma pessoa morre por homofobia.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.