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Por Juliana Avila Edição #60

Estrangeiras encarceradas

Como o tráfico internacional de drogas leva mulheres para prisões em São Paulo

“Nós precisamos de dinheiro e eles oferecem em troca de um transporte. Dizem que não vai acontecer nada. Mas fui presa assim que cheguei aqui”. Inicia o relato de Carmen*, boliviana de 36 anos que cumpre pena no Brasil por tráfico internacional de drogas. Ela conta que conheceu um senhor na fronteira da Bolívia com o Brasil, que lhe ofereceu uma boa quantia caso ela as levasse para fora do país. Mãe de um adolescente e trabalhadora de uma confecção de roupas, ela aceitou a proposta sem muitos questionamentos, inclusive sobre qual substância transportaria. Foi flagrada logo no aeroporto Internacional de Guarulhos com “diamantes cristalinos” e, após julgamento, foi condenada a sete anos, dois meses e doze dias de prisão. Atualmente, está na Penitenciária Feminina da Capital, localizada no bairro do Carandiru na cidade de São Paulo.

Assim como Carmen*, Maria*, uma jovem portuguesa de 25 anos, também cumpre pena na mesma penitenciária. Questionada sobre a razão de estar presa, ela fala sobre a sedução do discurso do tráfico, mas muda de assunto bruscamente e conta que participa de vários cursos oferecidos pela instituição: “Trabalhar distrai a mente. E, no final, a gente tira uma grande lição daqui”.

As trajetórias delas são semelhantes à da esmagadora maioria das pessoas encarceradas estrangeiras no Brasil. Segundo números de 2014 do InfoPen, órgão de levantamento de dados penitenciários do Ministério da Justiça, 90% delas é acusada de tráfico internacional de drogas. Boa parte é detida diretamente nos aeroportos, enquanto tentam importar ou exportar substâncias ilegais – no caso do estado de São Paulo, isso acontece majoritariamente no Aeroporto Internacional de Guarulhos.

Em 2014, o Brasil abrigava 2.784 estrangeiros em suas prisões, o que corresponde a cerca de 0,6% do total de presos do país. São Paulo tem o maior número desses encarcerados, cerca de 65%. Os homens estão concentrados na Penitenciária de Itaí, no interior do estado, e as mulheres, como Carmen* e Maria*, estão na Penitenciária Feminina da Capital, na Zona Norte da cidade de São Paulo.

As pessoas que vêm de fora encontram as mesmas dificuldades que os brasileiros dentro do sistema prisional, como a escassez de material e a falta de apoio psicológica e social. Entretanto, são acrescidos a eles agravantes particulares, como a falta de compreensão da língua e do processo jurídico. Carmen*, por exemplo, queixa-se de que sempre toma muito cuidado ao se expressar, pois tem receio de ser mal interpretada e arranjar problemas dentro da penitenciária. Além disso, existe a dificuldade de contato com o Consulado e familiares.

Para Paulo Marcos de Almeida, juiz da 2ª Vara Federal de Guarulhos, assim que um estrangeiro é flagrado em delito, há uma série de procedimentos que devem ser obedecidos. O principal é que o Consulado precisa ser notificado de sua prisão, da mesma maneira que o indivíduo precisa estar ciente de seu direito de comunicar-se com representantes deste departamento público. Caso não possa pagar um advogado particular, a justiça é obrigada a lhe fornecer um defensor público. E, durante a audiência, é parte do protocolo oficial a presença de um tradutor, que faça a intermediação entre as falas do réu e das autoridades presentes. Entretanto, essa nem sempre é uma realidade, Carmen*, por exemplo, não teve tradução para o espanhol de seu processo e sentença, e ficou alheia à maior parte do que aconteceu na audiência.

Como acontece com os brasileiros, esses presos também têm direito à progressão de regime – ou seja, passar do fechado para o semi-aberto e, eventualmente, para o aberto. Entretanto, esse benefício pode não ser vantajoso para os estrangeiros. De acordo com Thalita Sanção, mestranda na Faculdade de Direito da USP. Na maioria dos casos, eles não possuem família ou contatos no Brasil e não são assistidos devidamente pelos seus Consulados, o que os deixa em uma situação de extrema vulnerabilidade quando estão fora da prisão. “Até pouco tempo atrás eles saiam das penitenciárias sem nenhum tipo de documento, já que os passaportes ficam detidos durante todo o processo legal”, comenta.

Com o objetivo de sanar parte desses problemas, em 2014 foi sancionada a Resolução Normativa nº 110, que concede aos estrangeiros que cumprem pena no país documentos provisórios de identidade. A Resolução foi importante para aqueles em progressão de regime, pois, tendo esse documento em mãos, eles regularizaram sua situação no país, inclusive acessando direitos básicos como saúde e busca por trabalho. Para os que ainda estão presos, essa regularização possibilita que abram uma conta bancária, podendo enviar e receber dinheiro.

 

Engajamento

Entre as organizações engajadas na regularização dos presos estrangeiros está a Associação Nacional de Estrangeiros e Imigrantes no Brasil (ANEIB). A entidade surgiu no início dos anos 2000 a partir da iniciativa de estudantes estrangeiros da Universidade de São Paulo, que sentiam não haver nenhuma organização lutando pelos seus direitos. Desde então, atua em uma série de episódios envolvendo um grande contingente de indivíduos dessa população. O principal exemplo foi a luta pela Lei da Anistia Migratória conquistada em 2009, que regularizou imigrantes irregulares no país e beneficiou mais de 40 mil pessoas.

O presidente da Associação e também um dos seus fundadores, Grover Calderon, é um advogado boliviano que presta muitos serviços a presos, além de auxiliar pessoalmente alguns Consulados. Ele lamenta que a Associação não possa ser mais atuante, e atribui isso à falta de recursos financeiros.Seu nome tem ganhado destaque entre os estrangeiros do presídio masculino de Itaí, que o advogado visita frequentemente. Entre as dificuldades mais chocantes, ele observa o abandono dos encarcerados por parte dos Consulados. Itaí fica a aproximadamente 300 km de São Paulo, e portanto prestar auxílio a esses presos tem um custo muito alto, com o qual muitas unidades consulares não estão dispostas a arcar.

Outra instituição de referência na área é o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que desenvolve o Projeto Estrangeiras, composto inteiramente por mulheres e que busca auxiliar encarceradas da cidade de São Paulo, dando a elas voz, atenção jurídica e acompanhamento emocional. A iniciativa conta com a colaboração da Defensoria Pública da União de São Paulo, o qual cede ao ITTC estagiárias que auxiliam no dia-a-dia do Instituto e nos atendimentos dentro das penitenciárias.

Segundo Isabela Cunha, uma das colaboradoras do Projeto, 95% dessas mulheres são acusadas de tráfico internacional de drogas, fazendo o papel de “mula” – pessoa cujo trabalho é o transporte de entorpecentes. A maioria é provenientes de países africanos, como Angola e África do Sul, e países latino-americanos, como Bolívia, Colômbia e Peru. Muitas são mães e provedoras do lar, que buscavam complementar sua renda e acabaram em negócios ilícitos. “Uma história bastante recorrente é a da mulher que está precisando de dinheiro e conhece alguém que lhe oferece uma determinada quantia para que ela faça um transporte, às vezes explicitamente de drogas e, às vezes, mascarado de outra mercadoria”, diz Isabela.

O ITTC realiza atendimentos semanais na Penitenciária Feminina da Capital a mulheres em regime fechado e semi-aberto. Durante essas visitas, as colaboradoras buscam facilitar o contato das presas com seus familiares, a Defensoria Pública e seus respectivos consulados. Além disso, as orientam em relação ao andamento do seu processo criminal. Maria* elogia a atuação da instituição: “Elas fazem diferença para muita gente aqui dentro”.

Oportunidade para pessoas estrangeiras presas

A Justiça Federal de Guarulhos, em parceria com o Centro de Defesa de Direitos Humanos de Guarulhos (CDDH) e o setor de responsabilidade social do Aeroporto Internacional de GRU, elaborou o projeto PRORREST – Programa de Ressocialização de Réus Estrangeiros. Ele tem duas frentes de atuação: facilitar a expedição de CPF para os réus e a construção de um albergue transitório.

O juiz Paulo Marcos de Almeida, um dos idealizadores do Programa, diz que antes do PRORREST os estrangeiros precisavam enfrentar muitos passos burocráticos para conseguir o CPF, o que tornava o processo muito difícil e demorado. Em vigor desde janeiro de 2016, a iniciativa cortou etapas para que os réus da Justiça Federal de Guarulhos adquirissem o documento. A aquisição do CPF sana o problema de documentação dos réus, pois eles precisam requisitar uma Carteira de Trabalho, sem isso não conseguem empregos formais quando estão em liberdade.

A segunda proposta do PRORREST é a construção de um albergue transitório para que os réus em liberdade tenham um lugar para ficar até poderem se estruturar sozinhos. Dessa forma, também terão endereço fixo para receber a visita dos respectivos Consulados e de assistentes sociais. Segundo Orlando Fantazzini, secretário de habitação de Guarulhos e presidente do CDDH, a expectativa é que as pessoas permaneçam nele por, no máximo, seis meses.

O albergue está sendo construído como uma extensão da casa sede do Centro de Defesa, que será responsável inteiramente pela sua gestão, e a previsão é que seja inaugurado ainda neste semestre. A construção foi financiada pela Concessionária do Aeroporto de Guarulhos, e atualmente, procuram outros parceiros, principalmente Embaixadas. Além disso, buscam dialogar com parte do empresariado da cidade: “Essa parte é difícil porque muita gente tem preconceito com a questão de detentos e egressos”, conta o juiz.

Paulo Marcos relata que a ideia do projeto teve seu embrião há alguns anos. Em uma audiência de leitura de sentença, uma italiana condenada por tráfico internacional de drogas recebeu o direito de apelar em liberdade, um privilégio pouco comum nesse tipo de caso. Entretanto, ela começou a chorar e fazer questionamentos sobre onde iria ficar e como iria se manter. Percebendo que as autoridades presentes não tinham respostas para suas colocações, ela insistiu em continuar presa. “Quando percebemos que a pessoa prefere ficar na prisão, que não é um hotel de luxo, a ir para a rua, tem alguma coisa muito errada acontecendo”, conta o juiz. “É preciso que esse estrangeiro tenha suporte, porque senão ele tem muita chance de voltar para a criminalidade”.

Maria* e Carmen* comentam a transformação que o encarceramento provocou em suas vidas. Ambas dizem que têm sido um grande aprendizado e que passaram a valorizar as coisas que elas têm fora da prisão. Entretanto, saudade ainda é o principal sentimento em pauta: “Lembrar e sentir falta do próprio país e da família é a pior parte”, diz a portuguesa.

A respeito do futuro, a perspectiva de Maria* é que ela ganhe sua liberdade em breve: “Eu já passei o último Natal aqui, presa, sozinha. Esse ano quero passar em casa, com a minha família”. Carmen*, questionada sobre planos de voltar à Bolívia, não consegue evitar um choro soluçante. “Eu tenho um neto de um ano e o meu maior sonho é conhecê-lo”.

Visita à penitenciária

A minha entrada na Penitenciária Feminina da Capital foi permitida pelo Juiz Corregedor dos Presídios e pela Diretora da Penitenciária. A visita aconteceria no dia 8 de novembro às 8 horas. O Setor de Reintegração pesquisou entre as detentas quais tinham interesse em participar da reportagem.

No dia combinado, fui levada para além dos grandes portões azuis marcados pelo nome SAP (Secretaria da Administração Penitenciária). Passei pela revista, que contou apenas com o detector de metais, e depois fui guiada ao Setor de Reintegração. Fui recebida por uma das responsáveis pelo departamento, Alessandra. Ela pediu desculpas e explicou que, das três estrangeiras que concordaram em conversar comigo, uma estava doente e não poderia comparecer. Em seguida chamou Maria* e nos levou a uma sala onde poderíamos conversar sem interrupções.

Maria* é uma ex-universitária portuguesa de 25 anos presa por tráfico internacional de drogas. Durante a nossa conversa, mostrou-se educada e eloquente, porém distante. Preocupou-se em apontar suas conquistas dentro da penitenciária e apoiava sua fé na ideia que faltava pouco para ela voltar para casa e para perto de seus pais, que sempre lhe deram suporte durante o encarceramento, tanto emocional quanto financeiro.

O tom da entrevista com a boliviana Carmen* foi bastante diferente. Aos 36 anos, a mulher que já é mãe e avó não recebeu uma educação formal e hoje não recebe nenhum apoio econômico da família. Em diversos momentos ela não conseguiu segurar um choro sentido, e desculpava-se toda vez. No fim da conversa, ela agradeceu e me desejou sucesso na vida como jornalista. Saindo do protocolo, a abracei e disse que também desejava a ela muita sorte.