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Por Ana Carolina Pinheiro, Ana Clara Giovani, Gabriel Manzo, Letícia Furlan, Lygia Ribeiro e Natália Koyama Edição #60

Adeus, Brasilândia

Ganhava quem dava a volta no quarteirão primeiro. Cláudio compensava as pernas curtas com sua leveza. Quando foi fazer a volta na esquina, tropeçou e começou a rolar. Um amigo disse que parecia uma batata. O apelido pegou e ninguém o conhece por Cláudio. Há 55 anos, Batata jogava futebol na frente da sua casa que depois se transformou na sua oficina autoelétrica. Por mais de 25 anos, a oficina foi o ponto de encontro dos jogadores da Mocidade Paulista e do Estudante, que tomavam banho e depois ficavam bebendo uma cerveja e conversando por horas. Um dos companheiros do Seu Batata era Sílvio, que foi apresentado como o “melhor enfermeiro da região”. Com quase 30 anos de diferença, a semelhança se encontra na barriga de chopp e no boné na cabeça. Seu Batata, branco, com cabelo, bigode e cavanhaque também brancos. Silvio, negro, sem cabelo, sem bigode e sem cavanhaque.

“Quando mais um casava, a gente construía mais uma casinha no quintal”. Iracema e seus irmãos passavam o dia todo brincando nas ruas de terra. Foram longos e bons tempos em uma casa grande na Freguesia do Ó, dividida por toda a família. Hoje, ela tem os cabelos grisalhos, cinco filhos e quinze netos. Negra, com uma pele lisa, é tímida. “Tava em casa quando bateram palma, fui atender lá. Um advogado. Tava dando a notícia de que o metrô ia passar”.

O chão de terra batida, entre as duas calçadas da Rua Amaro Domingues encontrava os pés descalços de Zilda, que brincava com os amigos na frente de sua casa, em 1958, no bairro Itaberaba, vizinho à Brasilândia. “Lembro-me da minha mãe costurando no canto da cozinha e o meu pai abrindo aquele portão com estacas de madeiras ao chegar do trabalho”. A jovem Zilda cresceu, casou e não mudou. O número 67 continuou sendo a sua casa, mas agora com o marido, o filho e a irmã, que morava em uma casa no mesmo quintal.

A vizinhança familiar e os hábitos cotidianos se transformaram em lembranças quando, em 8 de maio de 2012, o Governo do Estado de São Paulo publicou o decreto nº 58.025 em que informava a desapropriação de 400.407 m² em toda a região do projeto do metrô. Eram 406 os imóveis que seriam demolidos, 52 terrenos vagos seriam ocupados, 214 residenciais e 140 estabelecimentos comerciais destruídos, para a construção da Linha 6 Laranja do metrô, que ligaria a Zona Norte ao centro da cidade.

Um comunicado impresso chega à caixa de correspondência de todas as casas que estavam no meio do percurso da Linha 6. No informativo oficial, o Metrô de São Paulo alertava, de forma atenciosa, que aquela residência deixaria de existir dali a  um tempo, afinal, naquele trajeto seriam implantadas determinadas estações. O ajuizamento das desapropriações foi feito por peritos e engenheiros que avaliaram as condições de cada imóvel e, segundo a Secretaria do Transporte, todos os moradores deveriam receber indenizações compatíveis ao valor real e de mercado de suas casas. Segundo as pessoas ouvidas pela reportagem da Esquinas, não funcionou bem assim. Iracema, Zilda, suas famílias e vizinhos precisaram do auxílio de advogados particulares que fizeram novas avaliações do imóvel para conseguir aumentar o valor das indenizações.

Foto tirada por Ana Clara Giovani

Os tratores chegam

Em 29 de abril de 2015, Seu Batata tira os últimos pertences e deixa a oficina. Tem na lembrança cada detalhe do imóvel, desde o azulejo até o terraço. Quando a construção do metrô foi confirmada, muitos advogados começaram a passar de porta em porta oferecendo seus serviços. Uma delas foi Valéria Valentino. Desesperados, sem saber o que fazer, os moradores acreditavam que se pagassem a profissional, o processo sairia mais rápido. A advogada sugeriu que entrassem com uma ação por Usucapião. Para isso, Sílvio fez inúmeros empréstimos com parentes e amigos e gastou ao todo 15 mil reais, 8 mil para a advogada e 7 mil com encargos burocráticos que pede o Usucapião, para acertar toda a documentação provando que aquele imóvel era dele. “Até hoje não recebi nenhum centavo. A advogada só sabe falar que tem que aguardar. O juiz deu o número do nosso processo, ficamos entrando no site para ver, mas a gente não entende nada. Nunca sai. Aí liga pra ela e ela fala ‘Ah, tem que aguardar’”.

Iracema sempre esteve muito conformada com a desapropriação já que, para ela, “pobre não ganha briga de rico, não.” Primeiro, os oficiais de justiça contratados pelo Governo do Estado de São Paulo passavam dando a notícia das desapropriações, depois os assistentes sociais chegavam para conversar. A notícia veio em 2012 e, em 2015, ela e sua família se mudaram. Receberam 80 mil reais, o equivalente a 80% do valor da sua antiga casa. O dinheiro recebido, que ela não achou justo, deu como entrada em uma casa em Caieiras, onde não se adaptou. Então começou a pagar aluguel para continuar no bairro Itaberaba, lugar onde criou os filhos.

Domingo, 8 agosto de 2014, na casa  da família Casagrande, a campainha tocou. Era uma oficial de justiça com a ordem de desapropriação. Foi o último churrasco em família. Em 2010, as perfurações eram realizadas nas proximidades da Avenida Itaberaba, mas os moradores não acreditavam que aquele boato que rodava pelo bairro realmente sairia do papel, mas a obra do metrô chegou. Foram dois anos em meio a escritórios de advocacia, três avaliações da casa feita por peritos diferentes, alguns encontros de moradores e reuniões com representantes do metrô. A luta não parava, eles queriam um valor justo pela indenização. “Uma coisa que você pode anotar é que o processo de desapropriação feito pelo Estado é desumano. Pois, você primeiro tem que sair da casa, para depois eles te pagarem”. O dinheiro da indenização ainda não havia caído na conta bancária do casal, mas mesmo assim as chaves da casa foram entregues à concessionária Move São Paulo, responsável pela construção do metrô.

As obras da Linha 6-Laranja finalmente começaram, no dia 13 de abril de 2015. A Avenida Otaviano Alves de Lima, na Freguesia do Ó, foi o primeiro lugar a ser escavado. As estações iriam preencher 15,3 quilômetros subterrâneos. “São 4,5 bilhões  de reais em investimento privado, 4,5 bilhões de reais em investimento público, e as desapropriações são por nossa conta. Pagamos 500 milhões já depositados para moradores da região da Linha 6. A obra tem que estar operando até 2020”, afirmou o governador Geraldo Alckmin em 2015, em uma nota divulgada no portal da Secretaria dos Transportes Metropolitanos. O percurso entre Brasilândia e São Joaquim, que é feito em 90 minutos, passaria a ser feito em 23 minutos.

Mudança: o trem vem chegando

Seu Batata agora faz alguns trabalhos pequenos, na sua casa mesmo, três ruas abaixo de onde ficava a oficina. “É mais triste, eu passo aqui cinco, seis vezes por dia. Venho pegar minha neta, paro o carro ali, fico olhando e penso ‘será que é verdade?’, fico vendo o tapume na minha frente, sabendo que eu podia estar ali.” Sílvio paga mil reais no aluguel duas ruas ao lado da sua antiga casa. Até o dia que fomos conversar com ele, nunca tinha voltado à rua que viveu a vida toda.

A família de Iracema se separou. Se antes todos eram vizinhos de porta, agora são longos os telefonemas para matar a saudade. Diego está na casa em Caieiras, Douglas mora de favor na casa do sogro na Cachoeirinha, Diogo se mudou para o Rio de Janeiro e Alessandra deixa de comer para pagar aluguel no Paulistano. A única que teve oportunidade de continuar morando com os pais foi Cláudia, que dorme com os dois filhos em uma cama de casal em um puxadinho nos fundos da casa. A desapropriação, para ela, já é um problema do passado: “Ah, eu estou preocupada com o meu filho que está se separando”.

Zilda e Zé Carlos fizeram orçamento com três escritórios de advocacia. Escolheram um que era especializado nesse tipo de causa, mesmo com os honorários mais caros do que os outros. Os gastos não eram poucos, mas o casal ainda conseguiu comprar mais duas casas. Uma para o filho, que morava com eles na casa demolida, e outra para a irmã de Zé, que também tinha um quarto e cozinha no fundo do quintal. O comprovante de pagamento dessas novas casas, as gravações, os documentos e CDs com vídeos das visitas dos oficiais de justiça que passavam pela casa com uma praticidade técnica, que vinham na contramão do sentimento da família, naquela situação estava dentro de um plástico transparente, que Zé Carlos abria a todo momento,  e citava algum dado ou informação como forma de comprovação do seu argumento. Para Zilda, o discurso racional do esposo é um escudo para o seu sofrimento com a perda da casa, mesmo sem ter sido criado lá, como ela. “Passar pela Rua Amaro e não ver o número 67, dói”, comenta Zé. Ela se lembra do cheiro de almoço de domingo que a cozinha tinha, da felicidade do filho dentro do estúdio de música, que foi construído no segundo andar da casa, e do aconchego que sentia ao sentar na sala para assistir à novela. Eram recordações de sensações, poucas lembranças eram de coisas materiais. “Não tenho muito apego pelas coisas, mas sinto muito por conta dos aniversários, almoços, conversas jogadas foras, que vivi naquela casa”, lembra Zilda.

Trecho do Projeto Linha 6 – Laranja do Metrô
Divulgação

As máquinas param

Com três anos de atraso, a obra que já teve os anos de 2018, 2019 e 2021 como prazo de entrega, no dia 2 de setembro, não recebeu data para sua conclusão. A Move São Paulo, parceria público privada do governo estadual, era formada inicialmente pelas empresas Odebrecht, Queiroz Galvão, UTC e pelo fundo de investimentos Eco Realty, assumindo, assim, metade do custo estimado da construção em 9,6 bilhões de reais, cujo início das atividades foi no ano de 2014. Apesar de só ter sido paralisada no mês de setembro deste ano, a obra e o contrato de licitação já sofrem com investigações de irregularidade desde seu início. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) questionou as frequentes mudanças nas ações das concessionárias responsáveis e cobrou providências do governo.

Segundo um relatório do TCE, a UTC deixou o consórcio em 2015 e transferiu sua parte acionária ao holding Little Rock Participações, hoje com o nome OM Linha 6 Participações, que foi comprado pela Odebrecht em 2014 e também já havia recebido as ações de participação dessa mesma construtora. A Queiroz Galvão recebeu uma parte do controle acionário da UTC e mudou o nome comercial da concessionária.

O Tribunal de Contas do Estado cobra providência do governo por causa das falhas apresentadas na posse das ações. Além disso, essas alterações sem o respaldo governamental foram consideradas uma quebra da cláusula do contrato. A Procuradoria-Geral do Estado (PGE), de acordo com o TCE, só teria aprovado essas trocas por meio do Secretário de Transportes Metropolitanos, Clodoaldo Pelissoni, o que foi feito apenas em abril de 2016. Soma-se a isso, o questionamento do Tribunal de Contas sobre a quantia que o governo desembolsou em 2014 e 2015, que foi o equivalente a 592,3 milhões de reais em recursos do Cofre do Estado (Tesouro) direcionado ao pagamento das desapropriações dos imóveis para construção da Linha 6. Esses pagamentos foram cobertos por financiamento da Caixa Econômica Federal somente depois dos repasses à concessionária, no dia 29 de setembro de 2015.

A Move São Paulo defendeu-se em nota oficial afirmando que as modificações no quadro societário “respeitaram o contrato e as leis, e receberam anuência do governo”, que “corroborou” a alteração com um parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE). Também, foi divulgado pela assessoria que a OM Linha 6 é de controle da Odebrecht e que, portanto, não caracterizaria alteração no controle acionário. Já a Secretaria dos Transportes Metropolitanos esclareceu que as retiradas do Tesouro foram necessárias em decorrência da demora na formalização do contrato com a Caixa, mas que “não houve prejuízo ao governo, ao cronograma de execução das obras e, principalmente, àqueles que foram desapropriados”. Salientou ainda que foi favorável à alteração acionária “porque as empresas ingressantes atendiam aos requisitos de habilitação e qualificação econômica e financeira necessários para assumir o serviço”.

Em 2014, começou a Operação LavaJato, que investigou as três empresas constituintes dessa parceria público privada, indiciando seus presidentes por suspeitas de propina que envolvia contratos referentes à empresa estatal Petrobrás. A dificuldade na obtenção do financiamento de longo prazo de 5,5 bilhões de reais com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na obra da Linha 6 do metrô advém, no entendimento do Secretário de Transportes, Clodoaldo Pelissioni, da operação da Polícia Federal: “Em razão do envolvimento das empresas na Lava Jato e da situação econômica do país, elas estão tendo dificuldade em obter o dinheiro. Isso é muito preocupante”, disse ele em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Procurada durante essa reportagem, a Secretaria de Transportes Metropolitanos se manifestou sobre os motivos da paralisação das obras e como estão procedendo para retomada: “O Governo do Estado de São Paulo notificou a concessionária para que retome de imediato suas atividades sob pena de multas e penalidades. Não há pendências junto à Move São Paulo que impeçam a retomada das obras. O Governo do Estado trabalha intensamente para que a questão possa ser solucionada, colaborando junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para que a instituição autorize o financiamento de longo prazo para o parceiro privado”.

Caminhar pelas ruas da Brasilândia e ver aqueles quarteirões lotados de entulhos e cercados pelos tapumes grafitados é algo desanimador para os moradores e, principalmente, aos desapropriados. “Nós torcemos pela concretização da obra, não é porque fomos retirados da nossa casa que não vamos entender que tudo isso é para um bem maior”, comenta Zé Carlos. Para Batata, não ver as máquinas trabalhando é mais triste, pois ele pelo menos poderia estar em sua oficina. “Não temos o metrô e nem o imóvel”, conclui.

Questionada ainda sobre a continuidade dos processos de desapropriação, a Secretaria limitou-se a informar que dos 371 imóveis privados que estavam previstos inicialmente, 349 deles (94% do total) já tiveram emissão de posse e estão liberados para obras. Quanto às indenizações, esclareceu que uma desocupação só é permitida por lei após o depósito do valor indenizatório em juízo e que o Governo do Estado de São Paulo já desembolsou o valor total dessas indenizações. Não foi o que aconteceu, Zilda e Zé Carlos, Iracema e Sílvio disseram que foram desapropriados antes de receber qualquer parcela da indenização. Até essa reportagem ser finalizada, nenhuma das três famílias recebeu o valor total da desapropriação. Sílvio, inclusive, afirma que não recebeu absolutamente nada.

Os quarteirões da Estrada do Sabão com as ruas Professor Viveiros Raposo e Domingos Francisco Lisboa estão cercados pelos tapumes. Em meio ao bairro da Brasilândia, esses vazios denunciam a paralisação das obras do metrô. Não há movimentação ou barulho de máquinas, somente terras abandonadas. Foto tirada por Ana Clara Giovani

Os recursos dessa finalidade ficaram previstos inicialmente em 979 milhões de reais e juntamente com os 694 milhões  de reais para as obras, que, somados, resultam em 1,6 bilhão de reais que o governo estadual já aplicou na construção. A Esquinas não obteve resposta da assessoria em relação aos dados de desocupação referentes apenas ao distrito da Brasilândia. Por outro lado, a assessoria da Move São Paulo declara, em nota oficial, que cumpriu todas as obrigações contratuais e atribuiu os motivos de suspensão das atividades a fatores alheios ao domínio da concessionária, como: a deterioração da economia, os atrasos na liberação de áreas públicas por parte do Poder Concedente e mudanças nas exigências do BNDES. Afirmou, porém, que os processos de desapropriação seguem normalmente e que trabalha para a retomada do projeto, mantendo, assim, intactas as mais de nove mil vagas prometidas durante a construção da obra e os mais de mil postos de trabalho que seriam espalhados nas quinze estações da Linha 6-Laranja. A assertividade técnica dos discursos da Move São Paulo e do governo de um lado e o sentimento dos desapropriados e moradores da região da Brasilândia, que acreditam que o término da obra será posterior às suas próprias mortes, de outro.

Assim como Zilda e Zé Carlos, Iracema ainda espera pelos 20% restantes do valor da indenização prometido pela Concessionária Move São Paulo. Esse dinheiro ajudaria a terminar de pagar os 56 mil reais restantes da casa em Caieiras. No meio do barro e da poeira, algumas paredes com azulejo e porta papel higiênico ainda estão de pé, provando que o lugar já foi habitado, já teve vida. Quem sabe daqui a dez, vinte, trinta anos, terá novamente. Mas uma vida com pressa, uma vida que vem e vai e que lota os trens nos horários de pico. Por enquanto, não se ouve nem os barulhos dos tratores.