Dirce Cordeiro já passou por cinco internações em manicômios. Ela leva na testa uma cicatriz decorrente de uma crise em que caiu e bateu a cabeça. Em 1988, na primeira de suas internações, foi dado a Dirce o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva, transtorno mental que faz o paciente passar por fases de extrema euforia seguidas por períodos de tristeza, arrependimento e profunda depressão. Durante o tempo em que a felicidade invadia e tomava conta de seu corpo, além dos sonos encurtados, seus gastos não conheciam barreiras. Ela se tornava extremamente pródiga e caridosa. O cartão de crédito e o talão de cheque eram usados até o limite. Dirce até chegou a doar seu carro para poder realizar o sonho de uma pessoa que acabara de conhecer durante uma viagem a Roraima. Porém, como a alegria podia durar meses, mas não para sempre, logo vinha o arrependimento, e as contas, as dívidas e as repetidas internações. O período dentro dos manicômios era quase sempre repetido. Conforme o tempo passava, ela se sentia cada vez mais dopada, perdendo o controle motor até das tarefas mais básicas, como comer, escovar os dentes e falar. Não sabia o porquê estava internada e o propósito de ser medicada diariamente. Amenizava-se a crise e recebia alta, até a próxima internação.
Hoje, Dirce é mais do que os médicos, enfermeiros, família e pessoas que a controlaram, e trataram, permitiriam. Ela se envolveu na luta antimanicomial, tornou-se diretora executiva da Associação de Volta Para Casa e luta para estender a sua realidade de autonomia a outros pacientes. “Eu tinha achado o verdadeiro motivo para continuar e viver o meu presente: a vida. A luta pela vida”, Dirce relata em sua tese de especialização pela Faculdade de Medicina do ABC. Embora a sua história seja de superação, nem todos os pacientes que, como ela, entraram nos hospitais psiquiátricos tiveram a mesma recuperação. Muitos, se não ficaram trancados perpetuamente, perderam-se ao longo do trajeto para o suicídio, às drogas, à condição de morar na rua ou aos próprios delírios.
Os manicômios eram vistos como um asilo para desova de doentes, onde pessoas eram jogadas e trancadas, não para amadurecer, mas para apodrecer sob um regime altamente autoritário, reflexo da própria época. Aos loucos criminosos, internados até o final da década de 1980, eram oferecidas poucas, se não nenhuma, oportunidades de reabilitação. Os hospitais psiquiátricos combatiam a desobediência dos pacientes com castigos que extrapolavam até as condições dos presídios comuns. Conforme relata o Dr. Paulo Sampaio, médico psiquiatra, ex-diretor do Hospital de Custódia de Franco da Rocha e autor do livro A Desconstrução de um Sonho, o repertório para disciplinar os internos incluía castigos físicos e espancamentos, contenções mecânicas, aplicações de eletrochoque, ameaça e uso de medicação e confinamento solitário. Em alguns hospícios, o confinamento se fazia com a interdição do uso de roupas, inclusive durante os períodos de frio do inverno paulista. Lençóis e fronhas também eram proibidos, pois poderiam ser usados pelos detidos para cometer suicídio. Os cuidados hospitalares também eram falhos e remédios eram prescritos desnecessariamente como punição de mau comportamento. As reações adversas, descritas na bula dos medicamentos prescritos pelo médico, variavam entre forte relaxamento, incontinência urinária, tremores e contrações violentas, que acometiam a musculatura das costas, pescoço e cabeça, deixando o paciente em um arco voltado para trás.
Os tratamentos desumanos levaram médicos, familiares e trabalhadores de hospitais psiquiátricos a protestarem – reivindicando por um modelo de saúde humanizado. No processo de repensar o regime ditatorial, em 1987 foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental, que trouxe a importância de se tratar a doença psíquica como fruto de um contexto não só biológico, mas também socioeconômico. O relatório do evento, publicado no ano seguinte, sinaliza que a doença mental pode ser compreendida também como resultante do processo de exclusão social e humilhação dos pacientes. “A medicalização e psiquiatrização frequentemente mascaram os problemas sociais e assim contribuem para a alienação psíquica e social dos indivíduos submetidos a estes processos, despojando-os de seus direitos civis, sociais e políticos”. A reforma se materializou no projeto de lei do deputado Paulo Delgado (PT-MG), escrito em 1989. Retida entre tramitações parlamentares, apenas em 2001 a legislação foi aprovada. O texto da lei nº 10.216, ou lei da Reforma Psiquiátrica, diz que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”, e que “o tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais”.
O recurso extra-hospitalar
Com a aprovação da lei 10.216, a hegemonia dos hospitais psiquiátricos como núcleo organizador no tratamento das doenças mentais começou a ser contestado. Somente na capital paulista foram 17 mil internações pelo SUS em 2015 devido a transtornos mentais como demência, abuso de álcool e outras drogas psicoativas, esquizofrenia, oligofrenia (atraso no desenvolvimento intelectual), transtornos de humor e neuróticos, entre outros. A expectativa do número de internações para 2016 é pouco maior que 16 mil, próximo dos calores do final da década de 1990. A lei da Reforma Psiquiátrica ajudou a estabilizar o número de internações sem que este crescesse proporcionalmente ao aumento populacional. E para atender ao excedente de pacientes, surgiu um novo modelo de atendimento: os Centros de Atenção Psicossocial, ou CAPS.
Esses centros são utilizados principalmente como unidades básicas de saúde para o sofredor psíquico. Este novo padrão está muito mais centrado no atendimento local e personalizado que oferecem serviços que variam do atendimento psiquiátrico, fornecimento de remédios pela farmácia, terapia ocupacional, enfermaria com leitos, sala de convivência e barbearia para o bem-estar e autoestima dos pacientes. A forma inovadora está justamente em tratar o paciente no seu próprio contexto sem afastá-lo do seu círculo de convivência. Para Daisy Miriam, enfermeira e coordenadora do CAPS Praça Chile, em Santo André, sua preocupação está em prover um serviço humanizado que excede o dos hospitais psiquiátricos. “O que nós podemos oferecer que não seja parede e confinamento? Porque parede e confinamento cronifica. Você ter um sujeito dentro do convívio social, validando as suas potencialidades, não a doença, a gente consegue que a pessoa preserve o mínimo do que houver de são. Esse é o nosso grande desafio”.
A unidade de Santo André está mudando a vida de seus usuários. Ao redor dela, diversas residências terapêuticas foram instaladas – a sexta deve ser inaugurada em dezembro de 2016 – porém, mais do que alterar a paisagem, o CAPS está ressignificando a vida de seus pacientes como Juliana* e Francisco*, ao mesmo tempo em que recebem tratamento para esquizofrenia, também trabalham na rede. Ele, no serviço de escritório e ela como cuidadora, garantindo que outros tenham acesso aos mesmos recursos. A experiência deles primeiro como pacientes e, em seguida, como acolhedores aponta para resultados melhores. Francisco* teme que se não fosse pelo trabalho desenvolvido pelo CAPS em Santo André, seu destino hoje poderia ser diferente. Segundo ele, “se eu tivesse tido as crises esquizofrênicas em 1994, 1996, estaria em um manicômio, ou podia estar em presídio psiquiátrico, porque era muito agressivo, muito nervoso”.
Diferentemente da forma como as alucinações são tratadas pela cultura popular – como forma de genialidade matemática, ou fantasia – os surtos de esquizofrenia, na maioria das vezes, convergem para paranoias e sensação de perseguição, que colocam o sofredor em estado de angústia, agressividade e medo. Francisco* conta que as suas alucinações prejudicavam o seu trabalho. Enquanto caminhoneiro, ele ouvia xingamentos e ofensas dos outros motoristas, mas, mais do que atrapalhar seu serviço, as alucinações o acompanhavam até a porta de casa. “Às vezes, chegava onde morava e ouvia a sua voz: ‘É você mesmo, seu filho da puta’. Eu achava que você estava lá, porque falei de você e ouvia ‘vem aqui fora!’. Eu ia à rua às onze, meia-noite, e não tinha ninguém, mas achava que tinha porque eu ouvia a voz. Uma vez peguei um martelo e você não estava lá”.
O número de internações pelo sistema público de saúde no estado de São Paulo decorrentes de retardo mental, esquizofrenia e demência caiu desde 1998. Na época, contabilizavam 721.44 de casos. Em 2015, ocorreram apenas 22.821 internações. A diminuição é resultado da política de redução de leitos e não internação compulsória na pós-reforma psiquiátrica. O repasse de verbas públicas do orçamento da saúde mental a hospitais psiquiátricos em todo o Brasil, no mesmo período, também foi reduzido. Antes da lei 10.216 chegou a ser de 85%, hoje chega apenas a 20,61%, segundo o Ministério da Saúde. A redução abrupta levanta novas questões dentro da comunidade médica.
Marcelo Ortiz, diretor técnico do Instituto Bairral de Psiquiatria e médico psiquiatra que já trabalhou em um CAPS na cidade de Águas de Lindóia, acredita que o tratamento exclusivo no centro oferece riscos ao tratamento do paciente e que a ampliação da rede de serviços é necessária. “Por mais eficaz que sejam, por mais competente, por mais estruturado que esteja, ele não dá conta de determinadas situações”. Tais ocasiões podem envolver tentativas de suicídio ou até mesmo o desaparecimento do paciente. Também, o médico acredita que a eficácia está numa rede que atenda às diversas necessidades dos tratamentos, levando em conta a circunstância na qual o usuário está inserido. Para Marcelo, ainda há uma escassez dessa integração entre os recursos extra-hospitalares e os hospitais psiquiátricos.
Nesse contexto, no dia 1º de dezembro de 2016, a Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo fechou o último leito em hospital psiquiátrico. Mais de 160 pacientes foram encaminhados para unidades de residência terapêutica e hospitais gerais com objetivo, segundo nota oficial, “de reconstruir os vínculos sociais e familiares desses indivíduos, e de afirmar a sustentação da concepção de cuidado em liberdade”.
O retorno para a casa
A transição de um modelo centrado no hospital psiquiátrico para um atendimento diário e personalizado demanda uma equipe multidisciplinar e, muitas vezes, o acompanhamento sofre com limitações no aporte de recursos, pois sua importância é subestimada pela classe política. “Os partidos de direita tendem a enxugar os gastos sociais. Em 2008, a gente perdeu a nossa sede antiga por causa disso”, conta Elizabeth Henna, bacharel em Ciências Sociais, é uma das poucas integrantes do grupo antimanicomial “De Volta Para Casa” que nunca passou por nenhuma internação, porém conhece a realidade dos sofredores psíquicos por um caso em sua família. Parte dos pacientes se diz apolítica, mas a falta de representatividade legislativa faz com que busque emitir seus títulos de eleitor, podendo assim lutar por seus direitos por meio do voto. Enquanto essa realidade não se consolida em todo o país, o movimento continua a demonstrar sua força de oposição por outras vias. Em dezembro de 2015, o ex-psiquiatra e ex-diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, Valencius Wurch Duarte Filho foi nomeado Coordenador da Saúde Mental Álcool e Drogas pelo Ministério da Saúde. No hospício que dirigiu, durante o período em que foi diretor, praticava-se tortura, eletrochoques e a dopagem por medicamentos contra seus pacientes. O movimento social organizado de luta antimanicomial se mobilizou por meio de 656 entidades, e militantes ocuparam parte do Ministério da Saúde por 121 dias, demandando a exoneração de Valencius do cargo. No dia 09 de maio de 2016, a exoneração foi confirmada. Para Deise, “a Reforma Psiquiátrica vai além de propostas partidárias. Precisa haver o entendimento de que esse processo está muito cunhado na questão partidária e eu gostaria que a gente pudesse olhar além, dentro das políticas de saúde pública”.
Ao redor da associação e do CAPS, são implementadas os serviços de residências terapêuticas (SRTs), que buscam reinserir na sociedade usuários abandonados nos antigos manicômios – com internações que perduraram mais de 20 anos. Até agora são cinco sob o cuidado de Zélia Tolentino, enfermeira de formação, coordenadora das residências de Santo André, “membra de corpo e alma”, em suas palavras, da luta antimanicomial. Ela revela as dificuldades no cuidado de pessoas que perduraram por tanto tempo em uma internação reclusa, que trespassa algo básico como não saber o próprio nome ou idade. “Como que eu vou resgatar a cidadania? Pois saem de lá sem eira nem beira. Muitos sem saber o próprio nome.” As residências são divididas entre mistas e só masculinas ou femininas, a depender dos casos clínicos de cada casa, influenciando também no número de cuidadores designadas a cada endereço. Apesar do processo trabalhoso e longo, as residências se provam eficientes na visão de Zélia: “Tudo nas casas é decidido por assembleias com todos os moradores. Experimenta chegar atrasado pra ver como eles cobram. Isso é uma evidência da recuperação dessas pessoas e de sua autonomia”.
Ao adentrar a SRT da rua Estados Unidos, em Santo André, todos os moradores nos recebem sentados, em um grande sofá, assistindo à televisão. Cerca de oito homens, das mais variadas idades, decidem se será permitido a visita – todos concordam. Luiz carrega a chave dos portões junto de si enquanto mostra a casa. Todos os três quartos possuem ao menos duas camas e um armário individual para cada usuário. Roselly, uma senhora de meia idade cuidadora na residência, conta que é bem tranquilo seu trabalho, e seus pacientes são amigáveis e respeitosos. Uma de suas responsabilidades é acompanhar os moradores em passeios pelo bairro para comprar roupas, ir ao cinema, ao parque e ao CAPS. Os moradores da mesma casa sempre fazem essas atividades em conjunto, o que ajuda a construir um sentimento de proteção entre eles, segundo Dirce.
A estrutura de tratamento se desenvolve constituindo laços estreitos entre os usuários e seus cuidadores. Sandra, durante o dia, é frequentadora do CAPS e moradora da residência terapêutica feminina. Ela entra na sala, chorando, e implora à Daisy – responsável por seu cuidado – que a deixe levar sua medicação para casa, para toma-la mais tarde. Era seu aniversário e estava preocupada em ficar sonolenta durante a comemoração. Da festa participaram colegas e moradores de outras residências, com a possibilidade de desfrutar de um bolo de morango após os dois parabéns cantados pelos presentes. Na STR onde hoje moram, vê-se que os cuidados se ampliam para além do corpo e trazem conforto para os sentidos da mente. Embora a reforma do setor psiquiátrico não seja uma realidade em todo o país, ela tem se mostrado um avanço fundamental para a construção da autonomia de pacientes. Sandra vive sem as amarras do confinamento que outrora era recorrente – mesmo que para isso ela tenha que atrasar os comprimidos.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.