Bloco de papel ladrão: tira de si o indivíduo que o segura, desavisado. Mera peça em que sua fabricação mata a natureza. E, com a qual, cria-se a natureza: um espaço simbólico, imaginário, que coexiste ao percebido pelo olho humano, viciado na forma-cor uníssona do dia-a-dia. Capa dura, critério para os cuidadosos, que não aceitariam vê-lo estragado, desprezado. Tatear vagarosamente o dedão na capa, enxugando sua superfície suada na textura do bloco, me acalma se escorrego, o redemoinho das digitais de meu polegar; mas me agoniza se deslizo atritosamente e daí colho aspereza, aridez, mais comum em capas velhas e puídas, filhas do sebo e perseguidas pelo bolso vazio.
Uma porta é a capa do livro. Olhá-la pela primeira vez, estranha, me soa como um convite: a porta esconde, folhas retangulares empilhadas, cortadas tal-qualmente, brancas, em setenta por cento de cujo espaço hospeda-se uma torre preta de palavras: bloco homogêneo, se não fossem os pontos finais de cada parágrafo do texto, que, a despeito de ser justificado, tem alterada sua regra pressuposta “linha de palavra sobre linha de palavra” e cava espaços em branco na página.
O fim do parágrafo suscita o início da seguinte descoberta, cujo fim é justamente manter-me, leitor, à procura de outros fins e começos. E renovar-me, porquanto, quando me permito atingir subitamente, sem medo, pelo o que desconheço, permito, também, que nasçam outros eus em mim. Que eu me assuma múltiplo, em vez de uno.
Eu amo muito ler livros. Há complexidade: eu não, simplesmente, amo ler livros: lê-los, apenas passado o tenso choque entre a curiosidade me estimulando ao novo e o medo, dele, me repelindo. Ler um texto cujo foco é a morte de uma pessoa, por exemplo, me remete àquela de quem restou saudade. Passear a córnea marrom dos olhos pela tinta preta que desenha o formato das palavras que dela me relembram me golpeia… é sufocante. Submeto-me a esse risco, porém, ao virar a página fina e seca e escutar o farfalhar da página arranhando o muco viscoso de meus frágeis ouvidos. Por outro lado, pode me infiltrar um gozo encantador: na oralidade de João Ubaldo, na excentricidade de Sabotage, no irmão e na linguagem rica de Chico e na crueza e realismo de Kafka.
Quando assim, melindroso é largá-lo, pô-lo de costas à dureza antipática de uma mesa torpe, marrom-nada, insignificante e, de volta à realidade em que me sufoco, tornar a viver sob a supressão da potência dos sentidos, explorados energicamente, de forma única, no ato da leitura. Aguço a respiração até o cheiro de folha seca debochada pelo outono encorpar-se, no meu cérebro, em uma definida imagem, para a qual escolherei uma palavra. Assisto às folhas, as do livro, paradas, uma descansando sobre a outra, e desacelero a euforia do meu corpo, domino a “ofegação”. Descanso eu, também. O cérebro organiza imagens, entrelaçando-as a ideias, e me agrada o lufo assoprado de lucidez, a clareza do que ‘é’ e do que ‘não é’ – pelo menos naquele momento.
Satisfeito, arrebato, então, um sobre o outro, os dois blocos de folha que seguro com as mãos, cujos dedos contorcem-se rangendo e estalam um gemido estridente de tanto peso suportado durante a leitura. E o livro fecha. Deixa de ser porta, para o gozo ou o gatilho. Volta a ser livro: um mero bloco de papel.