Chuvisca brandamente em Pinheiros, bairro da Zona Oeste de São Paulo, em uma segunda-feira fria e cinzenta, onde encontramos a fotógrafa Talita Virginia, de 24 anos, em um café ao lado do Instituto Chão. O local pequeno e acolhedor possui paredes inteiramente enfeitadas, um tapete com a figura de Frida Kahlo dando boas-vindas aos clientes, além de uma playlist dos anos 80 que torna o ambiente descontraído e jovial, assim como a fotógrafa.
Vestida com um casaco de lã creme que ressalta o verde musgo do cachecol e o castanho de seus olhos, Talita conta à Esquinas sobre projetos futuros, sua visão do cotidiano tão presente em seus trabalhos, como o Pai Polícia, que deixou de ser o projeto de conclusão de curso que retrata a relação entre um pai que trabalhava como policial militar e sua filha para ganhar um novo formato.
Para Talita o trabalho que está sendo transformado em um livro, deixará para trás o modo explícito que expunha os fatos, abrindo espaço para uma experiência cheia de interpretações e descobertas, que mexe com a percepção do leitor. A ideia de Talita é que esse novo formato possibilite uma experiência única para cada pessoa, em que ela possa descobrir, ou não, os jogos de imagens subentendidas pela autora. A fotógrafa também fala da conexão que mantém com os materiais que produz, afirmando que tudo o que cria tem muito do que pensa e do que é.
O que você descobriu do seu pai e sobre a PM nesse meio tempo?
Antes, me fazia muito essa pergunta: “Como será que meu pai é na rua?”. Obviamente que nas primeiras vezes que o acompanhei, todos os policiais tratavam as pessoas formalmente. Só depois de algumas vezes que mudaram a postura. Em alguns momentos, eles falavam para eu permanecer onde estava e que eles já voltavam, sabia que eles iam dar um cacete em alguém. Eu obedecia, estava ali com eles, sob a guarda deles. Sabia o que ia acontecer, mas ficava pensando em uma saída de falar sobre o que eles estavam fazendo de uma forma que não fosse tão direta. Por isso foi caminhando para essa história focada numa criança, porque ela pode tanto representar a filha dele como a filha de alguém que sofreu alguma coisa por parte do policial. Então, o projeto tinha muito de que eles eram uns infelizes, explorados pelo governo, que ganham mal, que são mal treinados, uns fodidos que tinham que ficar de segurança em porta de Villa Country para conseguir mais grana, ao mesmo tempo em que eles, enquanto estavam ali exercendo o poder que tinham, também eram cruéis.
Qual o seu trabalho mais marcante?
Com certeza o Pai Polícia, porque foi meu primeiro trabalho e mexe muito com a minha intimidade e família. Esse projeto foi tão importante para mim que está virando um livro, muito diferente de quando foi criado. Olhá-lo em formato de livro e falar: “Nossa! Um desenho de um sapatinho roxo, que negócio é esse?” Já é uma experiência diferente do que você o ver quadro por quadro numa exposição, ou em um site. O barulho que a página faz é importante. O cheiro que a página tem é importante. Estou até vendo se consigo dar um cheiro de pólvora às páginas, porque eu quero que a experiência seja completa. Já que o livro é um objeto físico, você vai usar seu nariz, sua mão, seu olho, o ouvido no passar das páginas. Mas no final, todos os trabalhos acabam sendo um pouco marcantes, porque todos os temas que faço enquanto trabalho pessoal tem a ver com alguma coisa que vivi. Não vou buscar uma história, eu a percebo no meu entorno.
O que o seu pai achou do projeto?
Quando falei que queria fotografar, ir à ronda junto, ele falou: “Beleza. Vamo aí”. Depois da décima quinta vez, começou a dar desculpas para eu não ir. Mas, quando comecei a mostrar o meu trabalho e sair em algumas revistas e exposições, ele ficou super orgulhoso. Comprou todas as revistas Piauí – que não tinha para vender em Taboão da Serra, só em bancas daqui [centro de São Paulo] – e mostrou para os amigos. Sempre tive muito medo dele quando criança, tinha medo de vê-lo com aquela roupa preta. Era algo subentendido. Minha mãe era a intermediária para eu falar com ele ou pedir alguma coisa. E hoje, de vez em quando, dependendo do assunto, ainda disfarço e faço isso. Meu pai era mais bravo do que é hoje, porque sofria muita pressão. Atualmente, meu pai é super tranquilo, compreendeu isso e ficou orgulhoso porque começou a sair em revistas, o que para ele é uma coisa muito maluca.
Você comentou que sentia muito medo da figura do seu pai fardado. Você acha que a sua irmã também teve esse mesmo medo ou cresceu mais próxima a ele?
Nós temos quinze anos de diferença e, quando ela nasceu, meu pai não era tão assim, já estava a ponto de se aposentar. Quando eu ainda era pequena, a profissão o estressava e o afetava muito. Ele era muito mais nervoso com as coisas e com as pessoas. Então, com a minha irmã acho que meu pai conseguiu se expressar melhor, eles são bem próximos. Eu era a primeira filha, o cara tinha vinte anos, entendo também que é muito complexo lidar com esse tanto de coisa. Acho que para a minha irmã essa fase foi mais gostosa. Talvez tivesse medo, mas não tanto da figura, mas da profissão em si, que é perigosa. A minha irmã nunca teve isso de pedir as coisas por intermédio da minha mãe, ela mesma pedia.
De que modo a profissão do seu pai afetou a sua vida?
Foi mais quando era pequena, meu pai trabalhava na rua ainda. Como ele atuava no bairro em que a gente morava, tinha muito medo. Em um episódio, acabou matando o chefe do tráfico do bairro e tivemos que sair de casa e da escola – eu e o meu irmão perdemos seis meses de aula. Quem só saía para a rua era o meu pai, que trazia comida e eu, minha mãe e meu irmão ficávamos com a minha tia para não permanecermos sozinhos em casa. Na minha infância teve umas coisas assim, meio traumáticas, mas acabamos nos acostumando. Depois, na minha adolescência, ele trabalhou só na rádio, então foi tranquilo. Na faculdade, foi a época em que meu pai voltou para rua, mas como me mudei para uma república na Lapa, perto do Senac, essas coisas passaram a não me afetar tanto, e, acho que é por isso que passei a usar a minha irmã, de cinco anos na época, como alter ego, porque ela pegou essa fase dele na rua, então teve também essas histórias de não poder falar a profissão do pai.
E por depender desse status de classe, como você enxerga esse paradoxo em ter um policial atuando no seu bairro (na periferia) e morando na sua casa? Como seus amigos da escola viam isso?
Bom, na escola nunca tive nenhum feedback porque ninguém sabia, eu não podia contar. Mas na faculdade, por exemplo, já cheguei sofrendo bulliyng bizarro das patricinhas, porque era ProUnista – jamais teria dinheiro para pagar a faculdade. Era a única menina lá que precisava vender bolo de chocolate para conseguir comprar papel fotográfico. Nesse sentido foi muito chato porque até então na escola não convivia com essas classes sociais. No início, a faculdade foi bem chata, pois foi o começo desse meu embate. Às vezes, chegava de papete e elas falavam “chegou a Jesus Cristo”, eram coisas desse tipo. Mas por outro lado foi bom, porque desde esse tempo tenho esse embate, e é um dos temas que eu estou trabalhando em outros projetos.
A polícia é alvo de várias críticas no que se refere às suas abordagens na periferia. O que você enxerga de certo e errado nessas críticas?
Primeiro acho certo haver crítica, pois acho que estamos nos questionando muito mais hoje, devido ao acesso à informação maior do que alguns anos atrás. E sei lá, acho que antes a corporação enquanto polícia podia fazer muito mais coisas sem que ninguém soubesse ou notasse. Mas hoje, você não pode sair e bater em qualquer um, pode ter alguém te filmando. Ainda assim falta muito essa visão de que os policiais estão ali para servir, não ao governo, ou às instituições privadas, mas à população, pois eles também fazem parte dela. São vítimas deles mesmos no final. Porque se nós fôssemos fazer um desenho do ciclo de quem eles espancam e a relação dessa pessoa ali no bairro, esse ciclo vai voltar para eles em algum momento. Falta um pouco dessa visão por parte de quem dá opinião, e falta diálogo, pois em vários países do mundo a polícia é vista como a quem você pode recorrer, aqui não. Depende muito do seu status social, onde você está e de que situação vive. A polícia não está aqui para proteger a população, mas sim por interesses que sabemos quais são.
Qual foi o seu primeiro contato com a fotografia e como você vê o seu trabalho, de forma mais artística ou jornalística?
O meu primeiro contato foi em um curso de fotografia na ONG Meninos do Morumbi. Nesse momento, eu estava acabando o Ensino Médio, e pensei: “Ah! Vou fazer faculdade de fotografia”. Então, com o passar do tempo, pude trabalhar com produção cultural – produzindo obra de arte mesmo – e jornal. Antes, achava que era a área jornalística que eu queria, mas esta falta de expressão visual me incomoda muito! De vez em quando até faço pauta para jornal, mas assim, retrato. Hoje, estou entre as duas coisas, fazer pauta de vez em quando, mas também fazer ensaios para mandar para edital, participar de uma mostra e trabalhar no meu livro. Procuro balancear entre essas coisas de pagar as contas e conseguir levar o livro em paralelo a outros projetos.
O que mudou do seu segmento fotográfico de 2006 para cá?
Como estava na ideia de ser fotojornalista, todas as imagens eram muito diretas. Então quando ganhei uma bolsa de estudos e fui fazer um mestrado de fotografia na Espanha, que é uma outra cultura, entendi que aquilo tudo era completamente ultrapassado. Esse tipo de foto aqui (PM ao lado de uma criança com livro) é muito direta, você consegue resumir a história toda. Mas se você vai resumir uma história complexa em uma única imagem, qual é o mérito do trabalho? Tem que ir conduzindo o leitor para ele ir tirando suas próprias conclusões. Comecei a entender que é interessante fazer imagens mais simbólicas, imagens que juntas fazem sentido. Tem muito mais impacto um cachorrinho de pelúcia encurralado do que você fazer a foto de alguém apontando a arma. Isso já foi visto, não provoca nada nas pessoas, o que provoca é a ausência. Tem uma teoria do Ernest Hemingway que é muito boa, chama A teoria da ponta do iceberg. Temos o mar e a ponta do iceberg. A ponta é tudo o que você vê, porém tem muito mais ali em baixo. A mesma coisa serve para um trabalho de fotografia. Se você dá tudo isso aqui, não tem graça nenhuma. O seu trabalho tem que mostrar algo, mas que dê espaço para as pessoas entenderem que há muito mais além daquilo. Evocar toda essa história que está aqui debaixo depende da interpretação delas, então isso torna o leitor muito mais ativo. Eu adoro essa teoria [risos].
Que projeto você gostaria muito de fazer, mas ainda não arriscou?
Olha [risos], é que isso já foi feito, mas, se não tivesse, eu adoraria. Tem uma fotógrafa mexicana chamada Daniela Rossell, que era muito rica, amiga de todos os ricaços do México. Ela começou a fotografar as amigas com uma estética muito inovadora, e nem era fotógrafa, só rica mesmo. Rossell as fotografava dentro de suas casas com suas peles de onça, aquelas coisas bem bregas de gente muito rica, e conseguia condensar tudo em um único retrato de cada pessoa. Quando isso chegou às mãos de conhecedores da área, foi super aclamado. Só que as amigas dela quando começaram a ver o que saía de crítica do livro, começaram a entender que aquelas fotos só davam a entender o quão estranhas e miseráveis eram aquelas vidas. É muito impactante, adoraria fazer isso: fotografar artistas de classe média em toda a sua teoria de esquerda e tentar condensar em um retrato o tanto de hipocrisia que tem nisso, sabe? Mas é algo que eu nunca pretendo fazer porque se não vou perder todos os meus amigos. Talvez possa fazer isso quando estiver para morrer mesmo [risos].