Com empreendimentos e um parque a caminho, velhas pendências urbanas da Rua Augusta persistem
A Rua Augusta é o reduto da noite paulistana. No Alto Augusta – que recebe essa denominação por cruzar o bairro Jardins –, predomina a frequência de um público com maior poder aquisitivo: clientes dos bistrôs e espetáculos de teatros e ávidos consumidores das marcas de grife da Rua Oscar Freire. Em contraponto, o Baixo Augusta, que passa a ser chamado assim em meados de 2008, recebe a vida noturna, mescla as tribos e as calçadas ficam aglomeradas por causa dos bares e danceterias que fervem em agito. Durante o dia, o fluxo do Baixo Augusta é alto. O comércio varia de materiais de construção a sapatos voltados à comunidade LGBT. Esse universo multifacetado chama a atenção de novos investidores, levando modernos empreendimentos imobiliários à região.
Com a inauguração da nova torre do Hotel Ca’d’Oro em 2016, pela Tegra Incorporadora, anexada a um conjunto de escritórios e condomínios, transforma-se o cenário da tradicional Augusta. O clássico hotel de antes foi demolido e deu lugar a um novo, que tenta acompanhar as mudanças da região. Como consequência, seu público também se remodela. “Nós, antigos proprietários do Ca’d’Oro, recebemos da incorporadora uma oferta de compra pelo nosso terreno, mas não o nome. Por isso, propusemos continuar administrando o hotel, e aceitaram”, comenta Gustavo Guzzoni, gerente de operações do empreendimento e neto do fundador do original. A alguns metros, as famosas casas noturnas da Augusta pouco a pouco foram deixando de existir. Poucas continuam no local, já que os clientes são quase sempre os mesmos. “Eles procuram se divertir, ter prazer aqui e continuam vindo”, confirma o gerente de uma casa de swing local, próxima ao hotel, que prefere não ser identificado.
A rua se voltava exclusivamente à elite paulistana do começo do século 20 até o final dos anos 1970. O comércio de luxo era o carro-chefe quando os primeiros edifícios residenciais foram construídos. O Hotel Ca’d’Oro, por exemplo, foi o primeiro classificado na categoria de cinco estrelas da cidade, inaugurado primeiramente como restaurante em 1953. Recebeu personalidades como o sul-africano Nelson Mandela e o italiano Luciano Pavarotti. Com a construção de cinemas a frequência do público jovem na região se intensificou e influenciou a abertura de danceterias a partir da década de 1970, ganhando destaque a Klatu e o Nation Disco Club.
A partir daí, houve uma crescente desvalorização imobiliária na área central de São Paulo. É um fenômeno que acontece em quase toda grande metrópole do mundo. O centro da cidade se torna cada vez mais saturado e violento. Como consequência os escritórios e empresas são obrigados a expandir em outros bairros. Surgem, assim, novos “centros” em outras regiões da cidade, como foi com a Avenida Paulista e agora a região da Berrini, por exemplo. Somando-se ao crescimento da desigualdade social, os preços dos imóveis na região central caíram, facilitando a entrada de boates e prostíbulos. A decorrência dos preços baixos seguiu por muito tempo até os anos 2000, o “boom” imobiliário modificou o cenário — segundo um estudo de 2015 da Fundação Instituo de Pesquisas Econômicas (Fipe) e do site de classificados de imóveis Zap, após uma desvalorização prolongada desde os anos 1990, o preço subiu muito rápido a partir de 2005.
De tudo e de todos
A Augusta passou a ser identificada pela concentração do público LGBT. Junto a uma das ruas adjacentes, a Rua Frei Caneca, formou-se um núcleo de moradores e frequentadores que se sentiram livres para se expressar e se locomover nas redondezas com a facilidade de estar próximo ao Centro. O Baixo Augusta se tornou região democrática, onde cada vez mais tribos passaram a frequentar seus espaços, com abertura de baladas e novos bares.
Há dez anos, casarões abandonados e imóveis deteriorados foram derrubados para que condomínios e torres de escritórios ocupassem o local. Aumentando os investidores, a tendência é que os preços subam. Mas existe um risco de segregação urbana, que pode afetar moradores de renda menor, fenômeno conhecido por gentrificação. O termo é a tradução de gentrification, que significa um “processo de renovação e melhoramento de uma casa ou distrito de modo que esteja de acordo com o gosto da classe média”.
A expressão foi cunhada pela socióloga inglesa Ruth Glass, que observou as mudanças ocorridas em Londres há 50 anos. O processo foi definido como um influxo de investidores que propiciam melhorias com construções de novos edifícios, muitas vezes descaracterizando uma área e expulsando moradores de baixa renda. Na Rua Augusta, não é diferente.
Roberto Jerônimo é morador da rua há 16 anos e dono de um negócio local de materiais de construção. Ele explica a facilidade de viver na região, mesmo para alguém da terceira idade. Segundo Jerônimo, a Augusta é um excelente lugar para se morar. Existe qualidade de vida, uma vez que há fácil acesso a transporte público, não dependendo de carro ou rodízio, por exemplo. “É bom ver que velhos casarões abandonados são renovados e novos prédios são lançados”, defende. Segundo o morador, o preço do imposto sobre seus imóveis vale pela facilidade de se morar ali. “Na minha opinião não se paga muito de IPTU aqui. Eu tenho um imóvel de 160 metros quadrados e ainda é um negócio barato. Óbvio, depende muito das condições e negócios de cada um. Minha filha, em Perdizes, paga quase o dobro do que eu pago por aqui, e tenho mais facilidade de locomoção”.
Valorização verde
A maior expectativa do bairro está no projeto do Parque Augusta desde 2002, uma das áreas mais reconhecidas da região. Foi levantada uma discussão em relação aos terrenos — são dois, um pertencente à Cyrela Realty e outro à construtora Setin Incorporadora —, em desuso desde 1969, quando ali havia um colégio para meninas rodeado por uma área verde de aproximadamente 24 mil metros quadrados. Diversos movimentos foram realizados para que o lote fosse entregue à população.
Em 20 de setembro de 2018, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo homologou o termo de acordo que permite a criação do parque. A assessoria de imprensa da Prefeitura confirmou o acordo, explicando o processo de convergência que se fundamentou na aplicação da Transferência de Direito de Construir (TDC). Pela TDC, a municipalidade pode receber, em doação, imóveis privados onde há restrições de edificação, autorizando o proprietário a transferir para outro local ou alienar o ‘direito de construir’ definido para o imóvel pela legislação a fim de concretizar a política urbana prevista no Plano Diretor, podendo ser utilizada para implantar habitações de interesse social, melhoramentos viários e parques.
Um bulevar deverá ligar o parque à Praça Roosevelt, a cerca de 350 metros da área. Tudo previsto para abrir em 2020. A Secretaria de Urbanismo assegura que o Parque Augusta será mais uma estação verde para a fauna silvestre, preservando não apenas o trecho de Mata Atlântica, mas as edificações tombadas do perímetro. Também levará benefícios de cultura, esporte, lazer e educação ambiental à comunidade local.
Com a inauguração, a região terá o quadrilátero mais caro da Rua Augusta, incentivo para novos modelos de negócios. As danceterias e boates continuarão por lá. Talvez o perfil dos clientes se altere mais ainda, elitizando-se. Nesse cenário único, novos moradores buscam a infraestrutura que o Centro oferece. Os antigos, por sua vez, esperam pagar seus impostos sem aumentos abusivos e que o Baixo Augusta mantenha sua tradição de zona democrática, livre e informal.