O heroísmo transfigurado em trabalho voluntário no exterior
“Vai, gasta o dinheiro do seu pai fazendo trabalho voluntário fora do Brasil”, eles disseram, em silêncio. Aquilo ecoava na minha cabeça enquanto passava pela imigração na Etiópia. As fotos no Instagram de uma menina branca, loira, de olhos claros, com um tanto de sorriso branco no rosto de crianças negras ao seu redor não seriam postadas no meu Instagram. Neste caso, seriam crianças de olhos serrados e pequenos, de pele meio amarela, meio vermelha. A Etiópia era só a escala para chegar às Filipinas. Um destino divergente do estereotipado trabalho voluntário no continente africano.
Em 2016, depois de anos de empenho voluntário e muita reflexão, eu descobri – ou me conformei, entenda como quiser – que as pequenas boas atitudes são fundamentalmente mais importantes do que as grandes e magníficas. Até então, embriagada pelo heroísmo ocidental, apesar de morar em um País extremamente desigual, pensava que todos tinham que parar tudo o que estavam fazendo e se empenhar em acabar com a fome no mundo – a necessidade mais básica para a sobrevivência humana que não somos capazes de suprir universalmente.
E foi sabendo disso que eu fui para o outro lado do planeta fazer trabalho voluntário. Sem pretensão alguma de causar um impacto global ou de salvar o mundo com a minha prepotência branca e ocidental. Eu queria conversar com as pessoas, conhecer suas realidades e me fazer ajuda.
Antes mesmo de me preocupar, disseram “sim, a língua oficial é o Tagalo, mas todo mundo fala inglês”. Mas eu perdi. O “todo mundo” a que eles se referiam era a classe escolarizada. Aqueles com quem eu queria realmente conversar, eu não era capaz. O pouco que achei que poderia fazer dignamente havia perdido. E foi a partir disso que me coloquei onde deveria estar e onde todos que vão ao exterior trabalhar voluntariamente deveriam estar. No nada.
Perdi o único desejo que eu tinha de conversar e conhecer realidades. E ainda bem que perdi. Aquilo não era a minha realidade, não era o meu lugar, não era para mim. Era pelo Outro. E para me encontrar com ele eu tinha que perder tudo. Perder minha cultura, meu conhecimento, minhas vontades, minhas ideias. Não importava de onde eu vinha, quanto dinheiro eu tinha, onde estudava ou onde trabalhava. Só me fazendo nada eu sou capaz de compreender o Outro e assim, talvez, ser ajuda.
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Aquelas pessoas estão vivendo e sobrevivendo àquela realidade há muitos anos, não sou eu quem vai mudar tudo. De forma alguma eu deveria agir como “essa é a ajuda de fora que faltava chegar para o mundo ficar perfeito”. Deveria, inclusive, encontrar caminhos para evitar essa interpretação da minha presença, já que só por ser estrangeira automaticamente representava superioridade – ainda que viesse de um país tão desigual quanto as Filipinas. E por isso eu agradeço pelo ambiente ter me feito nada.
Se o encontro com o Outro efetivamente acontece, aquela cultura que antes não era passa a ser sua também. Aquela passa a ser sua realidade, com os sofrimentos e as alegrias. É uma imersão total às profundezas da alteridade humana. Se não é assim, o trabalho voluntário, dentro ou fora do seu país, é egoísta e megalomaníaco.
Portanto, querido jovem do século 21, se seu pai, mãe ou seja lá quem paga suas contas pode também pagar passagem e sobrevivência em outro país para você trabalhar como voluntário, comece a repensar suas fotos do Instagram.