Completando 70 anos de lançamento, a cartilha Caminho Suave continua com grandes vendas apesar de ser criticada por alguns professores e instituições
A fase da alfabetização é inesquecível para muitos. Talvez essa seja a explicação para a mais famosa cartilha de educação do País, Caminho Suave, redigida por Branca Alves de Lima, em 1948, estar completando 70 anos de lançamento. Após tanto tempo, ainda é possível encontrá-la nas bancas de jornal, nas escolas e em bienais do livro, não apenas como uma nostálgica lembrança do passado, mas também como a realidade de quem ainda persiste na utilização da obra como método de alfabetização infantil.
Essa persistência fez com que, de acordo com a editora Edipro, que publica a cartilha, a Caminho Suave tenha alcançado apenas neste ano a média de 14 mil exemplares vendidos no Brasil, sendo seis mil em São Paulo. Já a estimativa de vendas desde a primeira edição até os dias de hoje ultrapassa a marca de 40 milhões.
“Nossa visão é que a permanência da cartilha Caminho Suave está ligada à sua eficácia e facilidade no processo de alfabetização. Na idealização da autora a ideia é que os estudantes percorram um caminho suave no letramento”, opina Maíra Micales, coordenadora editorial da Edipro.
Micales não é a única a confiar na eficácia da cartilha. A Caminho Suave ainda é vendida como método oficial de alfabetização em algumas escolas. Familiar, a publicação é comprada como método de reforço em casa. Inesquecível, é consumida como recordação por saudosistas. Internacional, faz sucesso com povos que querem aprender o português e é exportada para países de língua portuguesa, como Portugal e Angola. Democrática, está presente em igrejas, ONGs e programas de alfabetização solidária. E não menos importante, com uma interrogação inclusa: o questionamento de sua atemporalidade.
A dúvida fica cada vez mais relevante no decorrer dos anos. O contexto histórico e social em que foi escrita já não é mais o mesmo. Ademais, os avanços nos processos de alfabetização fizeram com que o método exposto nela fosse considerado antiquado, inclusive pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), que não a recomenda.
Entretanto, algumas escolas ainda apresentam explicações lógicas para o uso do método. É o caso do Externato Santo Eduardo, escola particular, do primeiro ao quinto ano, localizada no Bom Retiro, Centro da capital paulista. A diretora Rita de Cássia Giongoli conta que para seu público, majoritariamente coreano, a cartilha se mostrou a opção mais eficaz. A associação entre imagens e sons, na opinião da diretora, é o principal diferencial e facilita o aprendizado entre estrangeiros e crianças com alguma dificuldade ou deficiência.
Em um pequeno passeio pelas salas de aula, é possível perceber as crianças realizando cópias de trechos da Caminho Suave. O método tradicional não é criticado pelos pais dos alunos e harmoniza com as grandes carteiras de madeira e o antigo piano da recepção. “Aquilo que está dando certo, você não tem que trocar”, acredita Giongoli.
Para a diretora, as tendências modernas na educação, como o construtivismo, possuem faces interessantes, as quais auxiliam na socialização do aluno. Porém, o ritmo lento e permissivo não a agrada. Sobre o debate da falta de diversidade exposta na cartilha, ela relata que a escola trabalha essas questões em outras disciplinas, pois a família “comercial de margarina” presente na Caminho Suave não é a realidade de muitos estudantes.
Professora titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e presidente da Associação Brasileira de Alfabetização (Abalf), Maria do Rosário Mortatti explica o sucesso da Caminho Suave a partir do princípio de que a cartilha se mantém em sua proposta original pedagógica enquanto se adapta às mudanças do tempo, como exercícios e diagramação.
“Eu não concordo com o uso de nenhuma cartilha. O problema da dificuldade do aluno em aprender a ler e escrever não se encontra no método nem na cartilha que o concretiza. O problema é de outras ordens, mais graves e mais sérias, como uma política educacional no país que não considera a educação como prioridade de fato”, observa.
Deixando de lado
A quase 63 quilômetros da capital paulista, na cidade de Mogi das Cruzes, a Escola Municipal de Ensino Fundamental I Monteiro Lobato abre suas portas para discutir os métodos de alfabetização. A diretora Andréa Pereira de Souza relata que ao lecionar em escola pública é necessário utilizar materiais didáticos recomendados pelo MEC e pautados no Parâmetro Curricular Nacional (PCN). Atualmente, esses materiais partem de uma abordagem sócio-construtivista, baseada em gêneros textuais.
Eles partem do princípio de que o aluno tem direito aos mais diversos gêneros textuais e deve entrar em contato com eles durante a vida escolar, a fim de construir textos com compreensão e interpretação solicitadas na Língua Portuguesa. Assim, mais do que tudo, o estudante deve ser capaz de entender e refletir sobre o que está aprendendo, sem “decorebas”.
Já no período em que a cartilha surgiu, alfabetizado era aquele que escrevia o seu nome. Hoje, essa discussão é muito mais complexa. O que antes era texto, hoje pode ser apenas um conjunto de frases. Um dos exemplos que Souza usou para exemplificar essa ideia foi que, na cartilha, a frase “Pedrinho é bonito e legal” seria desmembrada em: “Pedrinho é bonito” e “Pedrinho é legal”. Ou seja, não há o uso de conectivos e a construção de frases é prejudicada, afastando o aluno das produções textuais.
Embora as ideias sobre o que é aprender tenham mudado, algumas práticas tradicionais ainda perduram na dinâmica do professor. “Tudo é importante, é a dosagem disso que muda um pouco”, explica Souza. Assim, Souza finaliza explicitando que não se tira a importância do treino e da grafia, mas se foca muito mais nos quatro eixos da habilidade linguística: ouvir, escrever, ler e falar.
Por parte dos pais, as opiniões divergem. João Matheus entrou cedo na escola e, com apenas 4 anos, já era apresentado à alfabetização pelo construtivismo. Sua relação com as palavras foi dada tão rapidamente que surpreendeu a mãe. Ana Raquel Mafra conta que tinha uma Caminho Suave em casa e pretendia usar com seu filho mas, quando se deu conta, João já estava alfabetizado e imerso no universo das letras.
Já Jônatas Campos protagoniza uma história diferente. A mãe, Átila Maria Campos, conta que o processo de alfabetização de seu marido, Renan de Souza Campos, foi com a cartilha e ele sempre guardou ternas lembranças, o que o levou a comprá-la para seu filho. A mãe revela ótimas experiências com a obra, tanto como um método de reforço eficaz, quanto como uma forma de participar de um momento tão especial na vida de seu filho.
Entre cartilhas e construtivismo, o sucesso ou fracasso da alfabetização no Brasil se mostram além das folhas didáticas. “Não é mudando o método de ensino que se resolvem os problemas da educação no País. Isso é uma falsa solução. Tanto faz o método que escolherem, não será a solução, nem a perdição”, finaliza Mortatti.