Feminicídio, homofobia e racismo insistem em existir na sociedade brasileira
Por que certos aspectos da sociedade são tão difíceis de serem mudados? Por que aquele “tio homofóbico” persiste de geração em geração? Por que mulheres continuam recebendo menos mesmo exercendo as mesmas funções que seus colegas homens? Por que negros são os que mais morrem em um País em que são maioria?
Para entender o porquê de violências contra determinados grupos ainda estarem tão presentes na sociedade brasileira, é necessário partir da ideia de violência estrutural. O conceito trabalha em uma esfera macro, a partir de toda uma estrutura que foi definida secularmente. Ela apresenta contrastes específicos e não são apenas atos violentos isolados, e sim motivados pelo ódio a um grupo específico.
O historiador e professor René Duarte, formado pela Universidade de São Paulo (USP), defende que violência estrutural é tudo aquilo que retira direitos, marginaliza, exclui, consolida ou estabelece estereótipos dessas populações que são oprimidas há muito tempo. Entre essas minorias, estão negros, mulheres e a população LGBT. O professor Américo Maghoul, formado pela Universidade Católica de Santos também em História, reforça que é pela disparidade social e econômica que tais violências encontram seus caminhos até os dias de hoje. “A contínua desigualdade social e econômica, que cria cada vez mais excluídos, é provocada pela falta de acesso a uma educação de ponta, pelas injustiças, pelo preconceito, pelo racismo, pela péssima distribuição de renda, pela falta de uma política fiscal séria e pela grande dificuldade de se levar à população os serviços mais básicos”, afirma.
Maghoul acredita que as violências partem do período colonial, passam pela Independência, Império e chegam à República. Em todas essas fases, sempre foi possível identificar grupos pequenos – compostos por homens e de elite – que procuravam comandar tudo. Segundo René Duarte, não é do interesse das elites que a estrutura social mude. “É como se fosse uma conta: para uns terem privilégios, outros não podem nem ter direitos”, explica.
A cada 19 horas, um LGBT é vítima de assassinato ou se suicida no Brasil segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB). Por dia, morrem 12 mulheres vítimas de feminicídio segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por sua vez, são os negros que constituem a maior parte da população (78,9%) dos 10% de indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios conforme o Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Cores manchadas
A causa LGBT ainda é um tabu para parte da sociedade. “Ser LGBT ainda é ser oposição, ser profano a várias coisas tidas como sagradas para uma sociedade heteronormativa e cisgênero”, afirma o jornalista Ciro Oliveira, formado pela PUC de São Paulo. Oliveira acredita que haverá uma regressão das pautas LGBT devido ao atual cenário político, porém afirma que o movimento nunca esteve tão fortalecido.
O grupo é marginalizado às vezes dentro de sua própria família. A ativista e estudante Thaina Salomão ressalta a importância de existirem os grupos de apoio. “Eu acredito que os coletivos e os grupos são muito necessários para vivermos em sociedade, porque eles são um espaço de resistência muitas das vezes e nos permitem lutar com outras pessoas que sofrem o mesmo que nós”, defende. Oliveira acrescenta que a luta LGBT pode ser solitária e, por isso, esses coletivos têm um poder de gerar identificação.
“Ser LGBT ainda é ser oposição, ser profano a várias coisas tidas como sagradas para uma sociedade heteronormativa e cisgênero
Ciro Oliveira, jornalista
O momento político atual não parece otimista. O presidente do Brasil a partir deste ano é Jair Bolsonaro, que já fez uma série de declarações consideradas homofóbicas e apresenta um discurso de viés conservador. “Infelizmente, as pessoas fazem política a seu favor”, critica Salomão. A estudante considera importante que existam “brasileiros de todas as formas, tipos e jeitos” nos movimentos políticos e dentro do Congresso. “Há uma resistência para entrarmos em lugares como a política, então é importante que cheguemos lá para mudar algo”.
Apesar da situação, as Eleições de 2018 foram as que mais lançaram pessoas abertamente LGBT a candidaturas, totalizando 160 concorrendo a cargos políticos. É um acréscimo de 386% se comparado ao ano de 2016, segundo a ONG Aliança Nacional LGBTIQ+. Para os esperançosos, esse pode ser considerado um cenário promissor no que diz respeito à representatividade, sobretudo para a aprovação de leis que preservem as vidas de LGBTs e outras minorias.
Elas por elas
Feminicídio é a morte violenta de mulheres em razão do gênero, que morrem simplesmente por serem mulheres. Criar uma legislação para esses casos é nomear algo até então ignorado. “A Lei do Feminicídio representa uma mudança cultural numa sociedade patriarcal”, destaca Eleonora Menicucci, ex-secretária especial de Políticas para as Mulheres, vinculadas ao Ministério dos Direitos Humanos, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff na Presidência.
Ainda assim, só a lei não é suficiente. O Brasil está entre os dez países que mais matam mulheres do mundo. A atual relação de poder entre homens e mulheres foi histórica e socialmente estruturada. O patriarcado, em conjunto às crenças sociais, religiosas e culturais, oprime mulheres há séculos, e a formação da identidade feminina é o resultado determinado pelo que a sociedade espera do que é “ser mulher”. A violência contra mulheres vai de um comentário não requisitado sobre o seu corpo até a morte.
O termo “feminicídio” foi usado pela primeira vez em 1976, durante uma fala no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, por Diana Russell, que tem se envolvido em pesquisas sobre violência sexual cometida contra mulheres há 25 anos. No Brasil, apenas em 2015 o ato se tornou ilegal de fato, sendo caracterizado como crime de ódio. Atentados contra a vida de mulheres foram tratados como assassinatos por terem sido anteriores à lei, como os casos da advogada Mércia Nakashima, da estudante Eloá Pimentel e da modelo Eliza Samudio.
Em 2018, também houve uma renovação no Congresso Nacional para as mulheres: aumentou de 51 para 72 ocupando cadeiras. A advogada penal Priscila Pamela, que faz parte da Rede Feminista de Juristas, é rápida em sua resposta: aliada às leis, a educação é o único meio de conseguir lugar de fala na sociedade, acabar com o machismo e, consequentemente, com o feminicídio. O coletivo de que participa é um grupo de mulheres cisgênero e transgênero que oferecem atendimento especializado por um preço simbólico ou gratuitamente para outras mulheres e promovem eventos, como palestras para fins educacionais.
Resquícios do passado
Uma terceira parcela da população que é dizimada e sofre o peso do preconceito são os negros. De acordo com a ONG britânica Oxfam, será somente em 2089, por exemplo, que brancos e negros terão renda equivalente no Brasil. Esse dado representa a superfície de um problema estrutural da sociedade brasileira: o racismo. Antonio Malachias, professor de Geografia formado pela USP e ativista negro, vê o racismo no Brasil como um resquício de mentalidade de um País colonizado e escravocrata. Fragmentos que inferiorizaram – e ainda inferiorizam – a população negra.
A cada cem pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras de acordo com o Atlas da Violência de 2017. Uma ação sem treinamento e partindo de uma teoria racista faz com que os negros sejam o principal foco de morte pela ação policial, por exemplo. Os dados acabam por se cruzar, mas ainda se constata que boa parte dos mortos no Brasil atualmente são negros. Uma causa disso é o fato da grande maioria da população pobre e de periferia, onde ocorrem agressões com mais frequência, ser negra.
“Esses avanços [a favor de uma sociedade mais igualitária] são significativos, mas ainda insuficientes para promover de fato direitos e oportunidades iguais”, diz Malachias. Existe um grande bloqueio em aceitar a história escravocrata brasileira. Como lembra o professor, na Alemanha, existem museus que mostram o passado nazista e escancaram o extermínio de judeus, reforçando a lembrança coletiva dos erros do passado e impedindo que isso ocorra novamente.
Apesar do cenário, existem maneiras de quebrar a estrutura racista brasileira. Malachias ressalta ações afirmativas como as cotas raciais, que deveriam ser vistas como parte do desenvolvimento nacional e precisam estar presentes no setor público e privado. Elas devem ser acompanhadas por campanhas educacionais para escolas e empresas.
Diante desse cenário, o historiador René Duarte reconhece a complexidade das violências estruturais. “Se o mecanismo central, ou os mecanismos centrais, da nossa história e da nossa sociedade é marcado por essa ascensão da opressão, fica muito difícil mudar isso. Se a lei não funciona, a grande interrogação é como estabelecer políticas públicas que combatam essas violências estruturais”, declara. Um importante desafio a ser enfrentado por toda a sociedade brasileira o mais rápido possível.