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Por Larissa Basilio, Marcella Lorente e Pedro Garcia Edição #61

O que será de nós?

A descentralização do programa Transcidadania e a continuidade dos direitos à população transexual

A transfobia é recorrente na vida das mulheres transexuais brasileiras. De acordo com a ong Transgender Europe, organização voltada à defesa do direito de pessoas trans, entre 2008 e 2014, 604 travestis e transexuais foram mortas no País, e, sobretudo, em São Paulo. Por isso, programas como o Transcidadania, pioneiro na orientação e educação de transexuais no Brasil, são tão essenciais perante à nova realidade social que se descortina no País, onde a questão da diversidade sexual e de gênero está cada vez mais presente.

O Transcidadania surgiu justamente com o objetivo de mudar essa realidade marcada pelo preconceito, buscando dar novas oportunidades a pessoas transgêneros na cidade de São Paulo. Implementado em 29 de janeiro de 2015 pelo ex-prefeito da capital paulista, Fernando Haddad (PT), foi o primeiro projeto público elaborado para atender especificamente a transexuais e travestis, buscando a inserção dessa população na sociedade por meio da redistribuição de renda, elevação escolar, qualificação profissional e intermediação na busca por trabalho.

A partir do fim abril de 2017, contudo, um clima de incerteza passou a pairar em torno do futuro do programa Transcidadania. Com a mudança de gestão na Prefeitura de São Paulo, a nova equipe responsável pela Coordenação de Políticas para LGBT, órgão da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, optou por reformular o programa.

Questionado em março de 2017 sobre o futuro do Transcidadania, o prefeito João Doria se limitou a responder que continuaria com o projeto, ainda que seja de conhecimento público a diminuição de 65 vagas no programa apenas no início deste ano. Em 2016, o projeto dobrou as vagas de 100 para 200 vagas.

Inicialmente, o Transcidadania funcionava da seguinte forma: a ONG Koinonia era responsável pela formação relativa à cidadania, ministrando palestras e oficinas majoritariamente no Centro de Cidadania LGBT do Arouche. Enquanto a Prefeitura fornecia as aulas de educação tradicional por meio do Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e a bolsa auxílio. Além disso, é importante ressaltar que havia uma equipe específica, designada pela koinonia, para atender as participantes do programa, não só em questões técnicas, mas também visando um acompanhamento mais pessoal e pedagógico, uma vez que as diretrizes originais do programa previam amparo humanizado das meninas, e não simplesmente a preocupação com um desenvolvimento profissional delas. Até mesmo porque, entendia-se que os dois aspectos estavam conectados.

De acordo com o novo edital, é desenhada uma descentralização do programa. Não vai haver mais uma equipe específica para acolher essa população. A proposta é realizar um recorte no grupo das beneficiárias, levando-se em consideração o bairro onde vivem. Por exemplo, uma beneficiária que vive no extremo da zona sul vai se dirigir ao Centro de Cidadania LGBT mais próximo de sua residência, em vez de ir até o Centro da cidade. Sendo assim, a nova gestão prevê que haveria uma descentralização, considerando que, com esse novo desenho, as beneficiárias não ficariam todas concentradas no Arouche.

Realidades diversas

Para que o novo modelo do Transcidadania seja colocado em prática, as diretrizes do programa terão de ser alteradas. Levando-se em consideração que cada Centro de Cidadania LGBT será administrado por uma nova ONG, e que não vai haver uma equipe específica para gerenciar diretamente o programa, entende-se que as beneficiárias de cada unidade ficarão sujeitas à administração da ONG que cuida do centro para o qual elas foram dirigidas. Não haverá mais homogeneidade nos conteúdos trabalhados.

As beneficiárias do programa têm aulas e oficinas para inseri-las no mercado de trabalho.
Larissa Basílio

“É muito diferente a realidade da zona leste para a do Centro. A realidade e as necessidades da população T que vive em cada uma dessas regiões são diferentes também. Quando se descentraliza o Transcidadania, conseguimos avançar no sentido de oferecer uma política mais personalizada”, declara Wanderley Bressan, articulador social do Centro de Cidadania LGBT da zona leste. Também é levantada a questão de economia de tempo e dinheiro com o transporte para o deslocamento até o Centro da cidade.

“Além disso, acontece muito de perdemos contato com as meninas que vão para o Arouche. Muitas delas já convivem conosco e chegam até a estabelecer algum vínculo, mas quando são transferidas para o Arouche esse vínculo se perde”, completa o assistente social do Centro LGBT da zona leste, Thiago Aranha, ao defender um posicionamento a favor da descentralização do Programa.

Por parte das beneficiárias, as opiniões divergem entre si. Susi Rosário da Silva, de 30 anos, conta que gosta da interação que tinha com as outras participantes do programa durante as aulas e também diz ter aprendido muito com os conteúdos selecionados. Por outro lado, Chaiany Chinayder afirma nunca ter gostado dessas aulas, dizendo que não via sentido nas dinâmicas realizadas e que nenhuma abordagem feita acrescentou algum conhecimento a ela.

A coordenadora da ONG Koinonia e antiga responsável pelo gerenciamento e execução do Transcidadania, Ester Leite, diz que entende o argumento de que a descentralização pode ser positiva, mas acredita que alguns aspectos são esquecidos, como a questão da locomoção, pois, na sua visão, é importante que as mulheres transexuais utilizem espaços e serviços públicos, como metrô e ônibus. “Além disso, acredito que oferecer um ambiente onde possa haver troca de experiências é bastante rico. É saudável que uma menina que mora na periferia da zona sul converse com a que mora na da norte. Sem falar que, ao descentralizar o programa, também existe a questão da quebra de vínculo com profissionais que a maior parte das meninas já criou laços e desenvolveu confiança e cumplicidade”, replica.

Na gestão Haddad, o papel dos Centros de Cidadania LGBT se resumia em prestar assistência à população LGBT do bairro cujo Centro estava inserido. Sendo assim, tinha o papel de acolher todas as pessoas dessa população em específico, que se encontravam em situação de vulnerabilidade social. A pessoa trans ou travesti interessada no Transcidadania entrava em contato com o Centro mais próximo de sua região e fazia seu cadastro para entrar na lista de espera para participar do programa. Feito isso, quando surgia uma nova vaga, a equipe técnica de todos os centros se reuniam, e estabeleciam um critério para o preenchimento das vagas disponíveis. Depois desse procedimento, era avaliado e decidido quem seria a escolhida como nova beneficiária. Tornando-se participante do projeto, a pessoa passava a se reportar para a equipe do Transcidadania e, somente se necessitasse de suporte jurídico, retomava o contato com a equipe do centro onde realizou o cadastro inicial.

A nova gestão, no entanto, entende que o encaminhamento para o Centro LGBT do Arouche, para um trabalho desenvolvido de forma particular com as mulheres, é negativo no sentido de causar uma centralização do Programa. Levanta-se, inclusive, a bandeira de ampliação do Transcidadania por meio da política de descentralização, uma vez que o programa estaria mais disperso dentro da cidade. Ainda assim, para sustentar a ideia de reformulação, as diretrizes do projeto original não poderiam ser utilizadas.

Outra realidade

Também vale destacar que no edital do programa é dito que ele também é aberto à participação de homens transexuais. Ainda assim, durante o período de apuração desta reportagem não foi encontrado nenhum homem trans participando da iniciativa. Ao se buscar informações sobre a inclusão deles, foi apurado que as inscrições desse tipo são diminutas. Ao ser indagado sobre o porquê de os homens T não procurarem esse tipo de auxílio, Thiago Aranha responde que “a situação de vulnerabilidade social que permeia a vida do homem trans é completamente diferente da que uma mulher trans tem de lidar. A própria questão da prostituição é a prova disso”.

Ainda sobre a questão, a ex-advogada do Centro de Cidadania LGBT da zona oeste, Iara Matos, completa: “O homem trans geralmente se descobre e ou aceita numa fase mais tardia da vida, depois de ter concluído uma graduação, ou simplesmente após conseguir certa estabilidade”.

A respeito da descentralização do Programa, são poucas as certezas. A atmosfera repleta de dúvidas afeta não apenas as equipes dos centros e ONGs, mas também as beneficiárias. Indagações como “O que vai ser de nós?” eram frequentemente feitas durante as aulas finais com a equipe da antiga gestão. Ainda assim, todo esse clima não afeta as vidas que o Transcidadania já modificou, como Caroline Ferreira da Silva, que atualmente é alfabetizada, e Aline Marques que trabalha na Unidade Móvel de Cidadania LGBT.

A beneficiária Chaiany Chinayder nos recebe em sua casa para contar sobre su experiência com o programa e vivência como transexual. Confortavelmente, fala em meio aos relatos do cotidiano no Transcidadania, sobre relações pessoais familiares e amorosas.
Pedro Garcia

O nó da empregabilidade

Ao longo de seus menos de três anos de existência, o Transcidadania foi alvo de elogios e críticas, sobretudo em relação à questão da empregabilidade. No desenho do projeto, era previsto a oferta de emprego para as beneficiárias, premissa que seria viabilizada por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), mas não foi passível de execução devido ao cancelamento do programa. “A ideia do Programa é boa, mas existem muitas questões envolvidas. Não tem como tirar as meninas da rua se não tiver emprego. Eu tive sorte de conseguir trabalhar na Unidade Móvel, mas infelizmente ainda existem muitas meninas que se perdem”, afirma Aline Marques, ex-beneficiária do programa, que hoje trabalha na Unidade Móvel do Centro de Cidadania LGBT da zona leste.

“A Koinonia foi excelente em questão de educação, realizou um trabalho de excelência junto às meninas ao se tratar de Direitos Humanos e escolaridade, mas deixou a desejar em relação à empregabilidade. Daí surgem as críticas da nova gestão e até mesmo das beneficiárias, elas mesmas me disseram que sentiram falta disso para sua formação, por isso esse será nosso foco daqui para frente, mas sem esquecer a educação e os Direitos Humanos”, afirma Caio Reina, atual coordenador do Centro LGBT Arouche, funcionário da nova ONG que assumiu o projeto, a Rede Cidadã Multicultural.

Não tem como tirar as meninas da rua se não tiver emprego – Aline Marques, ex-beneficiária

Quando indagada acerca da questão, Symmy Larrat, ex-coordenadora do Transcidadania, declara: “O ponto é que estamos aplicando um Decreto de Lei de forma generalizada para pessoas que carregam bagagens singulares. Existem meninas que terminaram o ensino fundamental, mas existem outras que nem se quer são alfabetizadas. Como é que em dois anos se consegue alfabetizar uma pessoa e preparar ela para o mercado de trabalho? Ainda mais se tratando de um mercado que não está interessado em absorver essa mão de obra”. De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), em 2013, 90% das mulheres transexuais e travestis se prostituíam no Brasil, apesar de procurarem emprego no mercado formal.

Chaiany Chinayder ficou sabendo do Transcidadania por uma amiga e, com o programa, tinha o intuito de se formar no Ensino Médio e poder largar a prostituição, o que ainda não ocorreu. Ela afirma que a bolsa auxílio oferecida pelo programa cobre apenas o valor do aluguel de sua residência e, sendo assim, ainda existe a necessidade da prostituição – uma vez que o emprego formal para as meninas ainda é um desafio –, para que possa custear alimentação, transporte e outros gastos.

Ela deseja fazer um curso técnico de enfermagem, pois afirma ser seu sonho desde a infância. No meio de 2017, teve de abandonar o Transcidadania. Já tinha problemas em manter a frequência pois, como estudava à noite, tinha de faltar ao menos duas vezes por semana para se prostituir. Atualmente, a jovem pretende terminar seus estudos por conta e conseguir realizar seu sonho de se tornar enfermeira.

Algumas histórias, contudo, são exceção, como a de Caroline Ferreira da Silva, de 54 anos. “Sou negra, travesti e Ialorixá”. Nascida na Bahia, em Santa Cruz de Cabrália, ela veio para São Paulo e aqui vem travando grandes lutas para conseguir seus direitos como cidadã e também por uma moradia digna. Foi despejada de sua antiga residência e não consegue um aluguel por preço justo e padrões formais, tudo isso por não conseguir um emprego, devido ao preconceito que sofre diariamente. Apesar dos desafios, Silva não desiste de seus sonhos. Recém-alfabetizada pelo Transcidadania, conseguiu por conta um curso de Cuidador de Idosos e deseja trabalhar na área quando se formar.

Em uma oficina sobre empregabilidade na aula de Cidadania ministradas no Centro LGBT do Arouche todo o desenho e metodologia das oficinas fugiam do padrão tradicional, alinhando-se a uma abordagem que faz mais sentido ao universo das participantes, trazendo um padrão de discussão distante do modelo puramente expositivo. Na roda de debate, era possível perceber que as meninas se sentiam à vontade para expor suas opiniões e inseguranças, que enxergavam o centro como um espaço onde estavam acolhidas. O professor que ministrava a oficina, Franklin Felix, funcionário da ONG koinonia, organizou dinâmicas com bexigas, incentivou-as a esclarecerem dúvidas e compartilharem informações relacionadas ao tema, como cursos gratuitos e vagas de emprego sobre as quais tinham conhecimento.

“É comum ouvir profissões como maquiadora, cabelereira ou manicure, que geralmente são carreiras escolhidas por pessoas que vivem numa situação de vulnerabilidade social maior. Mas, em relação às meninas, o que acontece é que elas sentem que não existe outra escolha, como se não fosse permitido a elas ter o desejo de exercerem profissões mais tradicionais, como advocacia e medicina”, explica Ester Leite .

“O Transcidadania transformou a forma como as meninas se relacionam com as pessoas. Às vezes, estou atravessando a rua aqui na República e elas me chamam para tomar um café. É muito improvável de imaginar uma mulher trans ou uma travesti convidando uma mulher cisgênero hétero para conversar e participar de um ambiente social onde a maior parte das pessoas não é cis. O Transcidadania acabou com a distância que havia antes, quebrou fronteiras, foi além”, declara Leite. Cabe à nova gestão municipal agora dar continuidade ao programa e inserir as meninas no mercado de trabalho para que elas se tornem, de uma vez por todas, cidadãs.