Laerte Coutinho, uma das maiores cartunistas do País, relembra o início da sua trajetória e comenta o atual momento político brasileiro
Não é exagero afirmar que Laerte Coutinho, de 67 anos, é a maior cartunista transgênero do Brasil – aliás, ela é a única famosa. Ao lado de Glauco, Angeli e Adão Iturrusgarai, ela ajudou a elevar o cartunismo brasileiro a outro patamar. Laerte tem seu trabalho reconhecido, principalmente, pela representatividade de personagens como Suriá, uma menina negra trapezista, e Hugo/Muriel, que é homem ou mulher a bel-prazer. Ela ainda foi uma das primeiras figuras públicas a levantar a bandeira do crossdressing – ato de usar roupas e acessórios associados ao sexo oposto – e, posteriormente, assumir-se transgênero, o que culminou na criação da Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat) em 2012. Tudo isso sem nunca perder o humor.
Tamanha envergadura artística pode, em um primeiro momento, conferir-lhe uma aura altiva; embora tenha um documentário inteiro para chamar de seu, o Laerte-se (2017), de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva, ela raramente concede entrevistas. Fato curioso, pois é a própria quem recebe convidados em seu ateliê para conversar sobre os mais diversos temas no programa Transando com Laerte, exibido no Canal Brasil. Ainda assim, engana-se quem pensa que Laerte é dona de um ego inflado. “É difícil me sentir orgulhosa dos meus trabalhos”, afirma.
Ela também encontra dificuldade em enxergar motivos pelos quais se orgulhar diante de um período tão complexo para a política brasileira. Como alguém que, por meio de tirinhas e ilustrações, combateu e teceu ácidas críticas sociais contra a repressão da ditadura militar, ela frisa a necessidade da luta atemporal pela democracia. Confira abaixo a entrevista de Laerte Coutinho a ESQUINAS sobre sua vida, carreira e posicionamento político.
ESQUINAS Você chegou a iniciar os cursos de Música e Jornalismo na USP, mas nunca os concluiu. Existe algum motivo para isso?
Deve ter mais de um porquê, mas, para resumir, eu me desmotivei. Nunca fui muito de estudar, enquanto atividade disciplinada. Estudei e aprendi coisas em golfadas, pela vida, em classe ou de outras fontes. Entrei na Escola de Comunicação e Artes da USP (ECA) pensando em fazer Cênicas ou Cinema. Não havia o curso de Música quando entrei. Depois abriu e resolvi que era o caso, tendo alguma afinidade com piano e vontade de compor. Meu professor, Willy Correa, me fez ver que onde eu me expressava mesmo era no desenho. Tranquei matrícula e fui trabalhar. Depois voltei, para fazer Jornalismo, com uma pretensão acadêmica que nunca iria prosperar.
ESQUINAS Como e quando decidiu ser cartunista?
Desenho desde criança e, em algum momento, percebi que era desenhando que me expressava melhor no mundo. Em especial, gostava do desenho de humor, como via em revistas e em filmes de animação.
ESQUINAS Ser cartunista é uma profissão valorizada no Brasil?
No Brasil de hoje não há profissão valorizada. As relações de trabalho estão sendo demolidas sistematicamente. Se a pergunta se refere ao que é valorizado por essa estranha entidade – o “mercado” –, não sei dizer. A mídia impressa está num processo de crise e profissionais como cartunistas estão sendo, aos poucos, eliminados dos jornais e revistas.
ESQUINAS Qual foi o trabalho que mais te deixou orgulhosa em toda a sua carreira?
Não tenho um preferido. Aliás, é difícil me sentir orgulhosa dos meus trabalhos. Difícil no sentido de que é um sentimento custoso.
ESQUINAS Em 1974, você fez trabalhos pró-democracia durante o regime militar. Como se sente e o que pensa sobre o fato de várias pessoas estarem pedindo a volta da ditadura?
O esforço da luta por democracia não é temporário, ele tem que ser permanente. A própria ideia de democracia é algo em elaboração. Neste momento, envolve derrotar um sentimento radical de direita, que já foi mais reduzido, e se apresenta como ameaça concreta.
ESQUINAS Você se assumiu transgênero em um período em que o assunto não era tão discutido como é hoje. Você nota alguma evolução na sociedade no que diz respeito à aceitação de pessoas trans?
É uma questão que continua nebulosa, apesar de mais ventilada. Esse é o ponto em que estamos, aliás, há um avanço, acompanhado de feroz crescimento da agressividade e truculência. Fala-se e se elabora mais em segmentos da mídia enquanto se continua a perseguir e matar LGBTs pelo País inteiro.
ESQUINAS Ao rever matérias da grande mídia e veículos alternativos do período em que você se assumiu transgênero, nota-se uma abordagem muito mais conservadora e heteronormativa da grande mídia. Você partilha dessa opinião?
Sim, concordo com isso. Há um avanço nas abordagens sobre as questões de gênero em parte da mídia. Ao mesmo tempo, um crescimento dos ataques à discussão sobre essas questões, sobretudo em escolas, por meio de projetos de lei em pautas religiosas.