Surgido após o Massacre do Carandiru, o Primeiro Comando da Capital se tornou um grupo criminoso de nível internacional
Cerca de dez mil familiares que visitavam seus parentes encarcerados foram feitos de reféns no dia 18 de fevereiro de 2001, data da primeira megarrebelião no sistema prisional paulista. Trinta mil presos de 29 presídios do estado participaram do levante, possível graças à introdução da telefonia celular no ambiente carcerário, que agilizou a articulação entre eles. Foi o evento em que a imprensa se deparou com a sequência numérica 15.3.3 – ordem das iniciais de Primeiro Comando da Capital (PCC) no alfabeto. Mas, ainda que tenha tentado diminuir a sua exposição pública, o lema “Paz, Justiça e Liberdade” repercutiu nos noticiários.
Os presos protestavam contra a transferência de alguns dos líderes do PCC da Casa de Detenção do Carandiru, na zona norte de São Paulo, para penitenciárias do interior do estado. Mais do que um susto, a rebelião exibiu poder, a capacidade de organização e a liderança do grupo.
Criado no dia 31 de agosto de 1993, o Primeiro Comando da Capital era o nome de um time de futebol formado no Anexo da Casa de Custódia em Taubaté, o Piranhão, presídio de segurança máxima no interior paulista. A partir desse pequeno núcleo, em que oito presos perceberam que poderiam se unir contra a opressão dos demais e do sistema, surgiu o grupo que instauraria uma nova ética de autogestão com a “conscientização” dos encarcerados, criando regras como o veto ao crack nos presídios e a condenação da “caguetagem” e do estupro. Hoje, a facção domina 90% dos presídios de São Paulo. “O PCC nunca considerou que os ladrões são apenas sujeitos oprimidos pelo sistema, mas sempre considerou – e ainda considera – que o sistema é opressor. Ou seja, o sistema oprime, e os ladrões fazem guerra contra a opressão na visão deles. Guerreiros, mais do que vítimas, é como eles se veem”, afirma Gabriel Feltran, sociólogo e autor do livro Irmãos: uma história do PCC.
O surgimento do grupo foi muito influenciado pelo massacre do Carandiru em outubro de 1992, no qual policiais militares acabaram com uma rebelião matando 111 presidiários. O PCC tomaria emprestado o lema “Paz, Justiça e Liberdade” da facção carioca Comando Vermelho, que havia surgido em 1979 no presídio de Ilha Grande com propósito similar de luta contra a opressão, mas que logo entrou para o mercado das drogas. O grupo paulista só aderiria ao tráfico em meados dos anos 2000, sob a liderança de Marcos Camacho, o Marcola. “O PCC costurou uma ampla rede de produtores, consumidores e distribuidores de drogas em todos os estados brasileiros a partir do momento que eles chegam nas fronteiras da América do Sul e acionam os grandes mercados produtores”, pontua Bruno Paes Manso, jornalista e autor de A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, livro que escreveu com a socióloga Camila Nunes Dias.
Estima-se que o grupo tenha, hoje, quase 30 mil membros espalhados pelo País, responsáveis por manter girando um caixa que atingiu 200 milhões de reais em 2016, segundo o Ministério Público Paulista. Em levantamento da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados de 2016, o mercado consumidor de drogas brasileiro produz uma receita anual de 14,5 bilhões de reais, usada na compra de armamentos e financiamento de outros crimes, além de contribuir para os avanços contra o Estado e a opressão violenta sobre comunidades pobres. “Em vez da gente entender como funciona a indústria do crime, ficamos enxugando gelo, só prendendo e matando. É a linguagem de ataque ao ‘inimigo’, como se assim fosse resolver o problema”, critica Manso.
Todo esse financiamento, que se tornou mais complexo a partir da entrada no mercado de drogas, sustenta a estrutura burocrática, financeira e também assistencial do grupo. Nas periferias, de acordo com o livro de Feltran, o grupo não aparece da mesma forma que no noticiário. “Na minha pesquisa, demonstro que Estado e mundo do crime coexistem como influências para essa parcela da população. Quando a pessoa tem um problema de saúde na favela, ela não vai procurar solução no crime, mas no Estado. Quando ela tem uma moto roubada, vai procurar alguém do crime para tentar reavê-la”, conta.
Especula-se também que o grupo tenha influenciado na redução da violência em algumas regiões. No lugar dos ciclos de vingança, os assassinatos deveriam ter autorização do PCC para acontecerem. Menos mortes implicam menos atenção da polícia e, consequentemente, menos problemas para os negócios. Na Grande São Paulo, o índice de 60 mortes por 100 mil habitantes em 1999 – à época, dos mais violentos do País – diminuiu para dez. Ao mesmo tempo, conforme São Paulo ficava menos violento, os estados do Nordeste subiam no ranking da criminalidade.
Implicações nacionais
Para a ampliação de sua rede, o PCC adentrou o atacado das drogas, enviando a mercadoria a pontos varejistas sem exigir fidelidade ou filiação. Aos poucos, as ideias de se expandir pelo Brasil tomaram mais corpo. Ao mesmo tempo, o crime se expandiu por outras siglas. Nos primeiros dias de 2017, por exemplo, 56 detentos foram mortos na rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, no Amazonas. Na época, Sérgio Fontes, secretário de Segurança Pública do estado, afirmou se tratar do maior massacre prisional amazonense.
Os mortos faziam parte do PCC e foram executados por membros da Família do Norte (FDN) e do Comando Vermelho (CV). Em um intervalo de cinco dias, mais 33 pessoas foram assassinadas em uma nova rebelião, dessa vez em Roraima, em um presídio localizado na capital, Boa Vista. A onda atravessou regiões: em Natal, no Rio Grande do Norte, outros 26 mortos entraram para os números da Secretaria de Segurança Pública.
Segundo pesquisas feitas pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), o consumo e comércio de cocaína na América do Sul teve aumento de mais de 50% entre 2010 e 2012, fenômeno oposto ao resto do mundo, que enfrenta quedas na comercialização da droga. Nas regiões Norte e Nordeste, há o aumento das taxas de homicídio e, consequentemente, de encarcerados nos presídios. O crescimento de presos contribuiu para a busca de novas formas organizacionais, muitas vezes margeadas pelo “modelo PCC” – algumas aliadas, outras inimigas da facção. Foi também o momento em que, face ao crescimento da hegemonia do grupo paulista, as relações entre CV e PCC deixaram o estado de “guerra fria”. Sem propostas efetivas em relação ao sistema prisional, as perspectivas de conter esse problema nacional ainda estão longe de se concretizar.