Após décadas de progresso, Brasil decai nas taxas de imunização, resultando na volta de doenças erradicadas
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No ano de 1904, um surto de varíola levou o médico e sanitarista Oswaldo Cruz a iniciar uma campanha de vacinação obrigatória. O ato não agradou as camadas mais populares do País que, sem maiores esclarecimentos sobre o que era o antiviral, recusaram-se a aderir à campanha. Assim, no Rio de Janeiro, eclodiu a Revolta da Vacina. De lá para cá passaram-se mais de cem anos, mas algumas coisas permanecem iguais. Ainda existe quem faça propaganda dos malefícios da vacinação, afirmando ter dados que comprovam seus malefícios.
Nas últimas três décadas, o Brasil passou por grandes vitórias de imunização. Em 1989, registrou o último caso de poliomielite (conhecida como paralisia infantil, é uma doença viral que pode afetar os nervos e levar a paralisia ou até à morte também), recebendo, cinco anos depois, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Certificado de Erradicação da Transmissão Autóctone do Poliovírus Selvagem. Os últimos casos de sarampo (doença infecto-contagiosa viral extremamente contagiosa que pode levar à morte) ocorreram em 2000 e, após essa data, todos os casos confirmados foram importados ou relacionados à importação, sendo o último deles em 2015, entregando ao País o certificado de erradicação da doença.
Infelizmente, as vitórias duraram pouco. A menos de dois anos da última condecoração internacional, o cenário mudou. Em 2018, o Brasil voltou a registrar casos de sarampo, e apresentar uma baixa preocupante nas taxas de imunização contra a poliomielite.
O sarampo, sem casos no Brasil em 2017, no ano seguinte passou de 1.553 registros de acordo com o Ministério da Saúde. Esse surto pode se relacionar a dois fatores associados: a falta de imunização prévia e a alta da imigração venezuelana no Norte do País, local com maior concentração de casos.
A Venezuela é um país que sofre de surtos de sarampo. A partir da imigração para o Brasil, há o encontro com uma população que acredita estar imune à doença e, portanto, não se previne, espalhando o surto novamente. Segundo Isabella Ballalai, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), as pessoas não estão se preocupando com a prevenção e a responsabilidade de estar com a cobertura vacinal em dia é do Brasil, não de outros países.
Além da volta do sarampo, a poliomielite apresenta taxas baixas de proteção. De acordo com dados divulgados em julho de 2018 pelo Ministério da Saúde, há 312 municípios brasileiros com menos de 50% da população vacinada contra a paralisia infantil, sendo que a recomendação é de 95%, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Para tentar reverter esses números, o mês de agosto de 2018 foi preenchido por vários Dia D, em que ocorreram campanhas de vacinação infantil para sarampo e pólio. Mesmo com o mês inteiro de campanha, a meta não foi alcançada. “Pais jovens nunca viram a doença e, muitas vezes, protelam a vacina. Não temer a doença faz com que a população relaxe com a vacinação”, afirma Ballalai.
Por mais que o medo e a falta de informação com as vacinas sejam partes da problemática, a população não é a principal, responsável de sua proteção. Há outras questões, como o horário de funcionamento dos postos e a falta de vacinas.
No dia 31 de agosto de 2018, a unidade básica de saúde de Ponte Grande, zona leste de São Paulo, estava sem as vacinas dpaT, preventiva do tétano, coqueluche e difteria, e da meningite C. A auxiliar de enfermagem do local relatou que tal situação se repete todo o mês e quando não falta uma vacina, falta outra. Em nota para o G1, o Ministério da Saúde informou que a empresa que produz vacinas de meningite C, a Fundação Ezequiel Dias, tem atrasado as entregas de compostos. Já o laboratório divulgou estar com problemas atípicos na área de produção. A nota também dizia que a situação seria normalizada naquele mesmo mês.
“Achologia”
As fakes news possuem grande consequência nesse assunto. Um exemplo desse tipo de boato surgiu em 1998, na Inglaterra, quando o médico Andrew Wakefield publicou um estudo com dados falsos que relacionavam a vacina do sarampo com casos de autismo. Wakefield perdeu o direito de exercer a Medicina, mas esse boato ainda é disseminado.
Esse tipo de publicação causa pânico até hoje, levando parte da população a questionar sobre a importância e a obrigatoriedade da vacinação. Desse modo, alguns vão procrastinando a dose anual da gripe e remediando a presença dos filhos nos postos. A escola e o pediatra cobram com frequência a carteirinha, mas, segundo Isabella Ballalai, mesmo com a carteira de vacinação irregular, não é possível impedir que uma criança tenha acesso à educação. “O problema da evasão escolar é ainda maior, as crianças não podem ser impedidas de estudar”, opina.
“Não temer a doença faz com que a população relaxe com a vacinação
Isabella Ballalai, presidente do SBIm
Mesmo assim, quando os pais são questionados sobre a responsabilidade de imunizar seus filhos, alguns afirmam que a possibilidade de serem presos é preferível à injeção de “venenos” em suas crianças. Luana Ribeiro*, mãe de duas meninas, procura por médicos e instituições que não fazem exigências de vacinação, mas gostaria que essa decisão não fosse complexa. “Diversos países não colocam a vacinação como obrigatória por entenderem que isso não é papel do governo”, relata.
Não é difícil encontrar grupos no Facebook que defendem a não vacinação. As postagens são semelhantes, tratam de efeitos colaterais graves e da toxicidade da vacina. Nos comentários, estão frases como “elas [as vacinas] não me protegeram, mas graças a Deus estou viva, pois pela vacina eu teria morrido”. Nesses grupos, os próprios membros afirmam e ratificam teorias e dados e censuram publicações que apontem o bem que as vacinas causam.
“Eu chamo de um movimento de ‘achologia’: a ciência do ‘eu acho’. O movimento anti-vacinas é ignorante”, afirma Lucy Vasconcelos, médica e diretora da Sociedade Paulista de Infectologia. A doutora ainda alerta que a não vacinação afeta a sociedade como um todo, por ser uma questão de saúde pública.
Relato para os olhos vendados
Vinte e nove e 34. Apenas quatro números de diferença que representam inúmeras implicações quando se trata de uma sequela vitalícia. Esses são os números dos calçados de Maria José Mallozzi, de 71 anos, vítima da poliomielite.
Ela tinha dois anos quando sintomas de gripe e uma dor de garganta constante fizeram com que sua mãe a levasse em um médico e fosse diagnosticada com paralisia infantil. Mazé, como é conhecida, teve seus membros inferiores do lado direito paralisados, resultando em uma perna mais curta e mais fina que a outra, além da diferença de tamanho de seus pés.
Mesmo com sequelas, Mazé relata que teve sorte. Na época em que ia ao hospital, costumava ficar envolta por crianças com sequelas maiores que a sua. Paralisias amplas, pessoas que nunca mais poderiam correr ou jogar bola sem a ajuda de aparelhos. Já no seu caso, mesmo com suas limitações, sempre trabalhou o corpo. Fez balé quando criança e hoje pratica pilates, hidroterapia e reforça seus membros com fisioterapia.
Mas ainda possui empecilhos em sua vida. Caminhar é algo raro. Há oito anos, usa bengala e sente alguns incômodos na perna. Mazé diz não chegar a sentir dores, mas sensações estranhas, que a fazem evitar andar demais e pensar que ninguém vai querer sair com ela, já que caminha lentamente.
Além das dores, teve de lidar com o preconceito. Suas diferenças físicas se ressaltavam com o uso de aparelhos de aço e botas ortopédicas, resultando em gozações dos colegas de escola. “Bullying tinha e fica, principalmente na adolescência. A gente se acha inferior”, relata.
Mazé contraiu o vírus em 1949, quando vacinas de imunização contra a paralisia infantil ainda não existiam. Em 2018, as vacinas já conseguiram erradicar a doença, levando a preocupação para outra questão: o porquê as pessoas não estarem vacinando seus filhos. Os perigos do sarampo, da poliomielite e de tantas outras doenças são reais e podem ser prevenidos com a vacinação. Como alerta a médica Lucy Vasconcelos, o problema de não vacinar não diz respeito apenas a uma criança, mas sim a sociedade como um todo.