Afrouxamento da censura no período militar deu espaço para a ousadia formal e temática na televisão brasileira
“Um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca para fora”. Foi assim que Regina Duarte, a “Namoradinha do Brasil”, descreveu o presidente Jair Bolsonaro, à época candidato ao cargo, em entrevista a Ubiratan Brasil, do jornal O Estado de S. Paulo em outubro de 2018. As novas gerações, que conhecem a atriz mais por declarações antipetistas, talvez nem imaginem que há 40 anos ela estrelou Malu Mulher, o seriado televisivo mais progressista de sua época. Na pele da socióloga Maria Lúcia Fonseca, a atriz quebrou os estigmas ancorados em seu apelido, dado em razão da fragilidade dos seus personagens românticos. Malu tinha pouco de “Namoradinha” ao enfrentar a violência de seu marido Pedro Henrique, interpretado por Dennis Carvalho, levar a cabo um processo de separação em plena década de 1970 e sair em busca de suas liberdades sexuais.
“Passando no horário mais tardio da Globo, depois das 22 horas, Malu Mulher trouxe à baila assuntos que a TV não havia ousado até então por conta da censura”, afirma Nilson Xavier, pesquisador da teledramaturgia brasileira. O drama mostrava a mulher que questionava a tradição em busca da independência emocional e financeira. O programa dirigido por Daniel Filho abordava assuntos como aborto, orgasmo, sexo fora do casamento, anticoncepcionais, entre outros tabus. “O seriado tinha uma abordagem realista que não era calcada no folhetim, diferente do formato da telenovela”, diz o pesquisador, que considera a experiência ímpar na televisão brasileira até hoje. Contudo, Daniel Filho conta no livro Antes que me esqueçam, que, devido a pressões da emissora e do governo, a personalidade de Malu tinha que ser abrandada de episódio para episódio. Hoje, fica claro como Malu Mulher transitava entre morder e assoprar, sempre mostrando que sua protagonista não era uma feminista de carteirinha.
Metralhadora histriônica
Nesse mesmo 1979, a TV Tupi estreou o Abertura, um experimento dos mais originais e desregrados do telejornalismo brasileiro. Idealizado por Fernando Barbosa Lima, nasceu da necessidade de se falar de política e do Brasil na televisão. Lima levou o projeto a Petrônio Portela, então ministro da Justiça. “Esse programa só não vai ao ar se você não acreditar muito na democracia”, respondeu.
Sem uma direção geral bem definida, o Abertura consistia em uma junção de blocos entre entrevistas e declarações de vozes malditas até então: de Darcy Ribeiro, Walter Clark e Nelson Rodrigues, passando pelo trabalho de jornalistas como Villas-Boas Corrêa, Sargentelli, Vivi Nabuco e outros. “O programa era bem caótico, quase como se fosse uma performance da própria
abertura democrática”, conta André Corrêa, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Apesar do programa ser gravado, parecia ser ao vivo, o que é bem significativo para um regime que até há pouco impunha a censura prévia.
Mesmo sendo um marco por apresentar entrevistas com figuras como Ulysses Guimarães e Lula, quem roubava a cena era a histrionia de Glauber Rocha. “Na visão de Glauber, a televisão era um meio muito potente e que estava sendo mal explorado”, diz André Corrêa. Com claras influências da sua “estética da fome”, Glauber aparecia de camisa aberta e a câmera estava sempre incerta, desfocada, fechada no seu rosto. “As mazelas do subdesenvolvimento político e social traduzidas por um subdesenvolvimento imagético”, como resumiu o próprio cineasta.
Prova maior de sua irreverência foi uma conversa de Glauber com Brizola – não o Leonel, que acabara de voltar do exílio. Brizola era o apelido de um jovem negro, morador da favela da Santa Marta, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro. Glauber metralhava perguntas a ele enquanto gesticulava, ordenando closes ao cameraman. Um tanto intimidado pelo vulcão do Cinema Novo, o entrevistado respondia a perguntas como “Você acha que você representa o povo brasileiro? Já ouviu falar em reforma agrária?” e até “Que bicho que vai dar amanhã?”, em clara referência ao jogo do bicho. Esse experimento, associado às suas últimas obras no cinema, cabe bem em uma proposta do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, também conhecido pelas técnicas vanguardistas e polêmicas: “amassar imagens e sons, sem perder de vista que o acaso é estruturado, como o inconsciente”. Com essa experiência na mídia de massa, o Abertura mostrou que era possível discutir política no Brasil em 1979. Acabou com o fechamento da TV Tupi, em junho de 1980 – pouco mais de um ano depois de seu lançamento.