Conflito entre ambientalistas e ruralistas ameaça a legislação ambiental brasileira
Os ativistas ambientais estão preocupados com as declarações do novo presidente da República quando o assunto é meio ambiente. “Não podemos continuar admitindo fiscalização xiita por parte do ICMBio e Ibama prejudicando quem quer produzir”. Falas como essa, de Jair Bolsonaro, os deixam em alerta. Temem a perda da proteção da fauna e flora e, consequentemente, da identidade nacional.
A preocupação tem fundamento. Segundo dados lançados em um relatório da Trase, plataforma que acompanha a produção de commodities agrícolas, seis das maiores companhias que comercializam soja (Bunge, Cargill, ADM, Louis Dreyfus, Amaggi e Cofco) foram responsáveis por 58% das exportações do produto no Brasil e causaram 68% do risco direto de desmatamento entre 2006 e 2016 no País. Os índices têm maior força na região do Matopiba – que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, uma vez que foi a área que mais perdeu vegetação nativa para o plantio do grão no cerrado.
Atualmente, a legislação ambiental brasileira é considerada uma das mais completas do mundo. Com o intuito de proteger e conservar a biodiversidade do País, são 17 leis principais, aplicadas tanto a pessoas físicas quanto jurídicas. Quando o impacto ambiental gerado por alguma ação é de grande porte, o responsável pela fiscalização e acompanhamento do caso é a união entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e outros órgãos federais. Para efeitos de médio porte, quem toma a dianteira são as secretarias estaduais. Já quando a repercussão é pequena, a secretaria municipal do meio ambiente de cada cidade aplica as devidas penalizações.
Porém, algumas mudanças polêmicas afetaram recentemente a legislação ambiental, como alterações no Código Florestal Brasileiro, e os rumos da proteção ambiental se tornam incertos no governo Bolsonaro, assumidamente apoiado pelos produtores agropecuários. Para a engenheira ambiental Vivian Guerra, essa é uma tentativa de desburocratizar processos. “Pontos extremamente relevantes social e ambientalmente passam a ser engolidos pelo sistema”, critica.
Papel governamental
O Código Florestal tem como função estabelecer as leis que protegem a vegetação nas áreas rurais do país. Teve sua primeira versão assinada pelo presidente Getúlio Vargas em 1934. Na época, o regulamento atendia mais a industrialização do que preocupações ambientais, visando segurar os preços dos produtos produzidos e garantir o abastecimento nacional. Assim, a lei que previa a preservação de 25% das áreas cultivadas não chegou a ser de fato colocada em prática. Apenas em 1965, 31 anos depois, quando a lenha e o carvão não eram mais o foco governamental pela chegada dos combustíveis fósseis, a ideia de uma nova reserva florestal começou a existir.
Além disso, a preocupação global em relação ao meio ambiente passou a ser maior, influenciando nas decisões internas. “Acredito que a sociedade está ficando cada vez mais crítica e não aceitando decisões que não sejam para o bem comum”, afirma Guerra, que cita como exemplo a reação massiva quando Bolsonaro mencionou uma possível unificação dos ministérios da agricultura e do meio ambiente.
Em plena ditadura militar, o então presidente Castelo Branco cria os dois instrumentos que dizem até hoje quanto e como cada propriedade pode ser explorada. Os antigos 25% de vegetação nativa que deveriam ser preservados, chamados de “quarta parte”, passam a ser chamados por “Reserva Legal”. O tamanho da área a ser preservada passa a variar de acordo com cada bioma. Além disso, institui-se a definição da Área de Proteção Permanente (APP), espaço que deve ficar intocado e não pode ser explorado economicamente de nenhuma forma. Após o código de 1965, apenas o de 2012 teve mudanças efetivas e gerou debate em relação à flexibilização do uso da terra. Mesmo assim, as APPs e as Reservas Legais continuam existindo.
O atual Código Florestal surgiu a partir de um projeto de lei de 1999 idealizado pelo deputado da bancada ruralista Sérgio Carvalho, de Rondônia. Após várias modificações, a lei final pendeu para o lado do agronegócio, flexibilizando as normas de proteção ambiental, como anistias de multa, redução das áreas protegidas e diminuição da recomposição da vegetação. “[O novo Código Florestal] reduziu o alcance dos instrumentos de preservação ambiental e anistiou os produtores que desmataram ilegalmente até julho de 2008”, explica Vivian Guerra. A atualização gerou embates: de um lado, ambientalistas reclamando da diminuição da proteção; de outro, ruralistas comemorando a “evolução” do País e o fim da “ditadura ambiental”, como afirmou a então senadora Kátia Abreu em 2011.
Lei suficiente?
Apesar da Constituição cumprir sua parte, a realidade é outra. A fiscalização não é fácil: órgãos como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), citados pelo novo presidente no início desta reportagem, são os principais responsáveis pelo controle e aplicação de penas a quem desrespeitar as leis ambientais. Contudo, a grande extensão territorial dos biomas e a violência por parte de latifundiários, muitas vezes pegos com mão de obra análoga à escravidão e irregularidades ambientais, dificultam esse processo. Tal cenário foi comprovado pela ONG britânica Global Witness, que ranqueia o Brasil na primeira posição para a morte de ativistas ambientais, com 57 assassinatos em 2017. O dado, porém, foi contestado pelo Palácio do Planalto ao afirmar que parte dos crimes contabilizados tinham a ver com outros aspectos, como tráfico de drogas.
Para o especialista em gestão ambiental Thiago Siqueira, o principal impasse em relação às leis é a falta de aplicabilidade delas em âmbito municipal. “A gente vê que nos municípios mais afastados as leis ambientais não funcionam bem e não são bem aplicadas”, afirma. Siqueira cita a Secretaria do Meio Ambiente de Arcos, interior de Minas Gerais, em que existe apenas uma pessoa para fazer a fiscalização e outra para o controle hidrológico. “Falta funcionário, estrutura, gente trabalhando, reconhecimento. Falta dar poder ao Ibama como órgão de conservação para não ser submisso a interesses. Além de faltar políticas que fomentem o desenvolvimento sustentável”, argumenta o especialista.
Siqueira apresenta uma visão cética, como ele próprio afirma, para a preocupação dos brasileiros com o meio ambiente. O gestor ambiental diz que essa discussão no País ainda é muito recente. O evento Rio-92, por exemplo, foi o primeiro encontro que reuniu países para discutir a questão ambiental e ocorreu há menos de três décadas. “Os adultos de hoje não tiveram educação ambiental nas escolas, algo que hoje toda criança aprende”. Para ele, os resultados dessa educação virão a longo prazo.
O rompimento da barragem em Mariana, também em Minas Gerais, em 2015, revela conclusões inquietantes: destruiu quase toda a cidade, sem contar os recorrentes danos aos ecossistemas do Rio Doce, responsável pelo abastecimento de 230 cidades mineiras; 11 espécies de peixe do rio estão ameaçadas de extinção; a mancha de lama que seguiu o fluxo da água fluvial foi parar no mar, próximo ao litoral do Espírito Santo; e os efeitos dos rejeitos no mar continuarão por mais de cem anos. Apesar dos danos catastróficos, a situação ainda não foi resolvida. “A punição não chega e a recuperação do ambiente deixa de ser discutida”, afirma Thiago Siqueira, provando sua posição em relação às leis brasileiras. “São boas no papel, porém um tanto quanto falhas na prática”.
Faces da mesma moeda
Ao se falar do constante embate entre proteção ambiental e avanços do agronegócio, Marcelo Marcelino, diretor de pesquisa, avaliação e monitoramento do ICMBio, afirma haver solução para os problemas ambientais. Ele menciona a exploração do minério de ferro na Floresta Nacional dos Carajás, área de conservação federal administrada pelo instituto, localizada ao sul do Pará. “Essa atividade ocorre mediante a conciliação dos interesses de exploração pela [mineradora] Vale das jazidas de ferro com os nossos interesses de conservação do patrimônio de biodiversidade da floresta. Essa conciliação segue o princípio de que haverá a admissão e a tolerância de perdas que, porém, jamais poderão representar o desaparecimento definitivo e irrecuperável dos elementos de biodiversidade”, explica Marcelino.
O presidente do departamento jurídico da Associação do Vale do Rio Pardo (Assovale), José Odilon, afirma que se sentiu prejudicado pelas leis ambientais, uma vez que “o desconhecimento do legislador, somado a interesses políticos, é capaz de atravancar o setor que alavanca o PIB nacional”. Mas concorda que a legislação é essencial para mediar as áreas agricultáveis e as áreas de preservação. A proposta dos agricultores, segundo ele, é melhorar a tecnologia para aumentar a produção sem mudar a área, não interferindo na preservação e conservação ambiental.
Já quanto à nova perspectiva política para os próximos quatro anos, Odilon acredita que será boa para os agricultores em especial. Para ele, isso ajudará a desvincular a imagem do produtor rural à de um criminoso ambiental por trabalhar com tecnologia de ponta, minimizando os impactos e possibilitando uma produção considerada sustentável. Odilon espera que um cenário melhor no campo, “sem a criação de sanções e imposição de multas descabidas e execução de termos impossíveis de cumprimento”, possa aumentar a geração de empregos, produção de alimentos e de energia.
Caminhando na linha tênue entre interesses ativistas e agropecuários, a legislação ambiental brasileira, apesar de ser uma das mais completas, apresenta algumas falhas claras. A tendência do governo Bolsonaro é que ele atenda mais aos interesses agropecuários, acarretando em uma possível melhora na economia, e levando a uma perda dos direitos conquistados em relação à preservação do tesouro nacional ambiental. Atingir o equilíbrio entre conservação do ambiente e exploração responsável é um desafio a ser encarado pelo País como um todo, afinal, até que ponto o agronegócio, a mineração, a indústria e o meio ambiente podem conviver em harmonia?