“Porque o mundo tem de acabar!”, eu disse, entre risadas, bêbado e batendo no ombro do Gabriel, como se fôssemos cúmplices dessa queda. “Essa ideia do fim do mundo ronda minha cabeça há algumas semanas. Acontece que andei lendo Revelação e fiquei com algumas inquietações. Mas antes de falar sobre elas, deixa eu te lembrar do meu passado: nasci numa família laica, pai e mãe, que respeitava a liberdade de fé e a não imposição de dogmas religiosos. Não havia filosofia por trás desse comportamento, era puramente falta de Chamado e excesso de preguiça na salvação das almas. Para evitar brigas com as avós, fui batizado como protestante. Por falta de interesse, não fui à crisma. De terem jogado água na minha cabeça, nada contra. De não ter estudado o mínimo do Cristianismo, tenho um certo arrependimento.
“Nos últimos meses venho lendo sobre teologia política, mais especificamente teorias sobre o katechon. Ele é uma figura que vem depois do domínio aparente do Demônio, segurando o Tinhoso em sua onda de destruição. Mas ela precisa ser derrubada para que o Sete-peles domine o mundo. Só depois que há a submissão total aos desígnios do Diabo, pode vir a vitória final de Cristo. A ideia do katechon, esse freio que precisa ser removido, é desenvolvida por Carl Schmitt, um dos filósofos do nazismo. A defesa para uma teologia política é a sensação de que há mitos fundadores esquecidos e que são recorrentes na história política ocidental. O momento do katechon, a figura que impede a destruição total e, consequentemente, a salvação integral, se repete naturalmente no Ocidente.
“Por que isso é relevante ao nazismo? Não sei, não cheguei nessa parte, o livro é grande e difícil. Mas enfim, ao presente: nos últimos quatro anos, venho escutando arautos do Apocalipse. Lembra dos jovens na rua, buscando liberdades políticas e financeiras, aqui no Brasil e em outros países? Ouvi dizer que iriam (não vivi de perto para falar ‘iríamos’) vencer tudo e todos (tudo e todos, essa entidade etérea que nunca significa nada), e perderam, no limite. Hoje, ouço dizer que vamos perecer por conta daquela revolta, por conta de alguma parcela daquela juventude. Os clarins destas bandas do Inferno tocam para anunciar o fim do mundo novamente. Talvez eles estejam certos e estejamos indo para a merda. O que me indigna é o espanto daqueles pelo fim do mundo.
“Sou do pensamento exposto no Sermão 81, da Queda de Roma, de Agostinho de Hipona. ‘Mais vale que te espantes de ver o mundo chegar a idade tão avançada’. O sermão é de 410. Estamos em 2019. Eu queria entender um pouco mais sobre História Antiga. Sei que, como humanos e ocidentais, superamos Nero e Hitler, Stalin e Leopoldo II. Mas teve gente que fez mais merda antigamente. E temos de lembrar que havia menos humanos. Ou seja, proporcionalmente, intensificavam-se as tragédias. Não creio que os arautos do Apocalipse de hoje imaginem o que seja o Abadom. Esse maluco, sim, é pesado. Saca só, o cara liderava um exército de gafanhotos com poder de escorpião. Eles não podiam matar os homens, só torturar a galera sem a marca na testa. Os homens ‘desejarão morrer, mas a morte foge deles’. Acho que, em geral, por termos esquecido a Bíblia, perdemos a noção de um fim absoluto – e até desejável (vide o katechon) – e acabamos por nos impressionar demais.
“Essa é uma teoria condizente com a ideia de Schmitt sobre nosso esquecimento dos mitos ocidentais interiorizados. Outra teoria é que nós gostamos do caos. A mídia sabe. Na Itália, o que apareceu depois da queda de Roma, os jornais trabalham com os três ‘esses’: (e)scandalo, soldi (dinheiro) e sesso (sexo). Hollywood também gosta de um fim de mundo, basta contar quantas distopias consumimos daquele lado do mundo. Somos, eventualmente, a geração da distopia. E isso é lindo! Como disse um Papa do século 15, ‘vamos nos divertir, o mundo conduz a si mesmo!’”.
Gritei, cambaleante. Por enquanto, sei que, se eu cair, alguém me segura.