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Por Elias Leite e Yasmin Luara Edição #64

Bora pro choque!

A percussionista Sivuca se destaca na música e em projetos sociais

Sentada à mesa de uma hamburgueria, Silvanny Rodriguez, mais conhecida por Sivuca, transparece pouco seus 36 anos, talvez por seu estilo despojado e moderno. Para um observador desavisado, pode ser uma mulher qualquer, com suas roupas simples, dreads e fala descontraída. Mas trata-se de uma das mulheres mais empoderadas da percussão brasileira.

O pai tinha preferência pelas exatas, a mãe, pela área de biológicas, e ninguém da família estava envolvido com o campo artístico. Ainda assim, Sivuca começou na música quando era pequena. Aos 7 anos, aprendeu a tocar pandeiro por conta própria, apenas observando um amigo da irmã mais velha. Com o apoio dentro de casa, passou a estudar instrumentos de percussão. Sete anos depois, dava a primeira aula em uma escola especializada em música. “Meu professor disse que eu tinha potencial e me botou para ensinar”, lembra. “Nunca pensei em trabalhar com música, mas acabou rolando”.

O apelido veio do sanfoneiro paraibano Sivuca. Na escola de percussão, ela era a única menina e tinha mais facilidade que os colegas. Conseguia fazer movimentos diferentes em cada mão simultaneamente – habilidade conhecida como “independência de mãos”. Passaram a chamá-la pelo novo nome, usando a aparência do músico como provocação. O professor afirmou que aquilo era um elogio, já que o sanfoneiro era tão talentoso quanto a garota. Desde então, leva o apelido consigo para onde for.

Paulistana de nascença, a paixão pela música só cresceu com as aulas. Ela é conhecida por sua habilidade com o timbal, instrumento baiano muito usado por artistas como Ivete Sangalo e Carlinhos Brown. Passou um ano em Salvador, na Bahia, aprendendo com aqueles que conheciam o instrumento desde o berço. “Comecei a me dedicar muito, vivi lá e tive bons mestres, como Neguinho do Samba, Gabi Guedes e Márcio Brasil”, relembra da época com gosto.

A percussionista já trabalhou e ainda trabalha com músicos famosos da mídia, como o rapper paulistano Emicida, no álbum 10 anos de triunfo. Além disso, ministra aulas em blocos de Carnaval como o Me Lembra que Eu Vou, o Bangalafumenga e o “Bloquinho”, voltado para famílias e crianças. É a única mulher a comandar uma bateria mista na cidade de São Paulo, a Bateria Colorida. Sua empresa especializada em espetáculos musicais, a FBA Eventos, tocou para a ativista paquistanesa e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2014, Malala Yousafzai, em sua passagem pelo Brasil em julho de 2018. Apesar de todos os holofotes, uma coisa que Sivuca não abandona por nada é o trabalho social que realiza com jovens.

Esperança e aceitação

Em São Miguel Paulista, na zona leste da cidade, Sivuca faz parte do projeto social chamado Banda Alana, ligado ao Instituto Alana, organização da sociedade civil sem fins lucrativos, que nasceu com a missão de “honrar a criança”, promovendo o desenvolvimento integral dela. O grupo foi criado há 12 anos e ensina percussão aos jovens da comunidade. São Miguel Paulista é conhecido por ser um dos distritos mais perigosos da cidade. Já foi considerado, por exemplo, o bairro mais violento da cidade pela Organização das Nações Unidas em uma pesquisa publicada no jornal Folha de S.Paulo em 1998. Segundo o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o bairro está na 36ª posição entre os 96 distritos policiais em taxa de homicídios, com um índice de 10,3 por cem mil pessoas. Essa taxa vem aumentando desde 2013. Ao lado de Guaianases, Itaim Paulista, José Bonifácio, São Mateus, Lajeado e Vila Curuçá, faz parte do “Cinturão do Latrocínio” de São Paulo.

“A Sil me influenciou desde o primeiro dia, não apenas como músico, mas como pessoa. Se não fosse ela, com seu jeito de mãe e mestra, talvez eu tivesse me envolvido com drogas e crimes ou poderia até mesmo estar morto”, afirma um de seus alunos, Rodrigo Aleixo, que hoje a auxilia no projeto. Cristina Linhares, outra aluna, tem uma opinião parecida. “Antes de conhecer a Sil, eu pranchava meu cabelo, pois havia muito preconceito com cabelo afro. Depois, decidi aceitar as minhas raízes e mostrá-las sem vergonha”, conta.

Sivuca carrega consigo um bordão pessoal: “bora pro choque”. O lema foi criado para representar atitude, não ter preguiça e estar sempre pronto para a ação, qualidades que a percussionista sempre carrega consigo. A frase se transformou em hashtag, utilizada pela artista em suas postagens e nos blocos sob sua supervisão. Tornou-se estampa de camisetas, bonés e instrumentos musicais, além de página no Facebook.

Durante as aulas no bloco Me Lembra Que Eu Vou, a musicista demonstra seu talento com diversos instrumentos
Yasmin Luara

Talento e inspiração

Além dos projetos sociais, Sivuca trabalhou com profissionais que tiveram certa influência em sua trajetória, como é o caso do maestro, compositor, diretor e produtor musical Marcos “Xuxa” Levy, seu “padrinho de carreira”. “Desde que eu vi a Sil pela primeira vez, uns 20 anos atrás, percebi que ela tinha talento”, comenta. “Não era perfeito, mas potencial ela tinha. Poderia se tornar uma grande percussionista se continuasse a se dedicar. E foi isso que ela fez”. Para ele, a importância de Sivuca no mundo da percussão brasileira também vale para o que ela representa. “Apesar de ser talentosa, a Sil ainda não inovou nada no mundo da percussão, como o Carlinhos Brown fez. Mas ela é mulher, negra, lésbica e espírita, e tudo isso incomoda, mesmo no mundo da percussão que é um ambiente mais popular”, explica.

Júlia Favero faz parte da Bateria Feminina FBA, criada em 2018 e formada apenas por mulheres, e pensa do mesmo modo que Xuxa. “Ver a posição que ela ocupa hoje de percussionista, mestra e professora faz com que mulheres musicistas como eu queiram atingir o mesmo nível um dia”, comenta.

Todo o talento como musicista, professora e mãe para seus alunos não basta. Para Xuxa, ainda há pontos a aperfeiçoar. “A Sil precisa se arriscar mais, criar mais. Nos lugares em que ela dá aula e nas coisas que faz para ela mesma, ela ainda cria bastante coisa. Mas quando ela precisa sair da zona de conforto e tentar um trabalho diferente e mais arriscado, ela se contenta com aquilo que pedem para ela fazer”, critica.

A percussão é, sempre foi e sempre será a maior paixão de Silvanny Rodriguez. “O meu coração pulsa para a música”, ela diz para todos do bloco Me Lembra que Eu Vou. Apesar de seu sucesso, a artista afirma que a maior herança que pode deixar é a música, principalmente para seus “filhos” do Instituto Alana. Sivuca carrega consigo o sonho de oferecer aos meninos de São Miguel a oportunidade de ter a música como trabalho e vida e pretende continuar levando o universo da percussão para crianças, adolescentes e adultos.