O fim da epidemia da zika no Brasil não exime o Poder Público de continuar cuidando de crianças nascidas com problemas decorrentes do vírus
“O que você acha de ter uma criança especial?”, foi a primeira pergunta que os médicos fizeram a Alessandra Silva, administradora, depois de horas de um parto de risco, sendo necessário realizar uma cesariana de emergência. As noticias não eram as melhores. O filho dela, Bryan, nasceu estático, sem pulsação e batimentos cardíacos. Foram realizadas massagens cardíacas e aspirações de traqueia para ressuscitá-lo. Silva conta que foi pega de surpresa com aquela pergunta. “Eu sabia que tinha acontecido alguma coisa de grave na sala de parto, via muita movimentação e sussurros dos médicos, mas não estava preparada para isso”. Bryan foi uma das 30 crianças do Estado de São Paulo atingidas pela epidemia do zika vírus que afetou 293 bebês em todo País desde 2015.
Em novembro daquele ano, devido a um aumento anormal de casos de microcefalia, o Ministério da Saúde declarou emergência nacional. O ex-diretor de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde e uma das principais autoridades envolvidas no enfrentamento das doenças causadas pelo Zika vírus, Cláudio Maierovitc Pessanha Henriques, conta que esse foi um dos grandes desafios enfrentados por sua gestão. No mesmo mês, houve a confirmação de que a microcefalia tinha relação com o vírus zika. A equipe de Henriques acreditava que no ano seguinte as notificações de casos teriam números superiores ao do final de 2015 o que, felizmente, não aconteceu. Os casos foram caindo progressivamente de 2361 em investigação em dezembro de 2015 para 437 em maio de 2016.
Um ano depois, em maio de 2017, o governo federal declarou o fim de emergência nacional por zika, afirmando que continuará investindo na assistência das crianças afetadas, como em centros de reabilitação e na criação de um biobanco nacional de amostras de sangue, urina, saliva, que servirá de suporte para pesquisadores e especialistas, além de investimento na capacitação de profissionais de saúde.
O vírus foi descoberto em 1947 em um macaco na Floresta de Zika na Uganda e chegou ao Brasil em meados de 2013, ano em que o país sediou a Copa das Confederações, de acordo com um estudo publicado pela revista Science em março de 2016. O zika pode ser transmitido pelos mosquitos Aedes, assim com a dengue e a chikungunha, e segundo estudos realizados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), há outras formas de contaminação, como por via sexual, transfusional e perinatal, como no caso de Bryan.
Silva e Bryan ficaram um mês na UTI-Neonatal do Hospital Sapopemba, na zona leste de São Paulo, entre os exames que o bebê fazia para confirmar o diagnóstico dos médicos. A ressonância concretizou a hipótese: o recém-nascido tinha a Síndrome Congênita do Vírus Zika, que é o conjunto de sintomas provocados nos bebês de mães infectadas antes do nascimento, sendo a microcefalia um desses sinais. A infecção congênita é associada a outras anomalias, como limitação dos movimentos corporais e danos na parte posterior do olho.
A mãe relata que não entendia o que os médicos estavam falando e não tinha muitas informações sobre a microcefalia e outros termos utilizados por eles. “Comecei a pesquisar e me arrependi de ter feito isso. Na internet, só encontrava coisas horríveis, colocavam os bebês como aberrações”. Mas com o auxílio de outros médicos e de sua família, ela começou a se adaptar à nova rotina, saiu do emprego, desistiu da faculdade e passou a se dedicar integralmente aos tratamentos de seu filho.
“É uma luta diária”, desabafa. A busca por tratamento tem sido até hoje um dos maiores desafios da administradora, que teve o pedido de Benefício Assistencial ao Idoso e a Pessoa com Deficiência (BPC/LOAS) aprovado depois de um ano e esperou para começar a receber o auxílio de um salário mínimo para ajudar a suprir suas despesas. Em sua opinião, o valor é insuficiente. “Qualidade de vida com um salário mínimo é impossível”.
A antropóloga Débora Diniz, autora do livro Zika: Do sertão nordestino à ameaça global, que relata a descoberta da doença por médicos nordestinos e as consequências para as mães infectadas, observa que os critérios utilizados pelo governo federal para a inclusão no BPC/LOAS se movem a partir do tamanho reduzido da cabeça da criança, o que não ocorre em todos os casos de microcefalia. “O que acontece com as crianças que não tem o perímetro encefálico alterado, o que se faz com elas?”, questiona.
Diniz revela que visitou alguns centros do Nordeste e para ela tais locais “não comportavam nem as crianças que já eram atendidas, e agora têm nova demanda”. A antropóloga ainda fala do despreparo do sistema de saúde público brasileiro, lembrando que, muitas vezes, as crianças não têm acesso ao transporte para se deslocar até consulta, o que é assegurado pela regra do Sistema Único de Saúde (SUS), além de medicamentos e outros utensílios que não são oferecidos, como fraldas, leite e vitaminas. Diniz conclui que “o despreparo do governo quanto à assistência para essas mães torna a vida com um filho com deficiência muito difícil”.
Nos primeiros meses de vida do Bryan, Silva conseguiu tratamento no Centro Especializado em Reabilitação de Sapopemba, em São Paulo, uma das unidades voltadas ao atendimento especializado a pessoas com deficiência, que necessitam de tratamento oferecido pelo governo do Estado de São Paulo. O centro conta com uma equipe multiprofissional de médicos que tem a missão de desenvolver o potencial físico e psicossocial dessas crianças. A assistência é gratuita e integral a pacientes do SUS. O Brasil possui atualmente 52 novas unidades desses centros, cinco delas acabaram de ser inauguradas em São Paulo com um investimento de 9,1 milhões de reais, atendendo 80% dos casos registrados na cidade. No entanto, Alessandra Silva nota que sentia que os profissionais não estavam preparados para lidar com o caso de seu filho. “Crianças assim precisam de mais cuidado, ficam doentes com muita facilidade, acho que um centro especializado em paralisia cerebral e microcefalia seria mais viável”.
Silva começou a procurar outro atendimento e conseguiu uma vaga na Associação Cruz Verde, principal referência no País por ser o único hospital especializado no tratamento de pessoas com paralisia cerebral, incluindo microcefalia. Bryan realiza, às terças-feiras, fisioterapia e terapia ocupacional e a cada 15 dias passa por um fonoaudiólogo. “Ele necessita de mais sessões, mas como não tem lugar para realizar, faço alguns exercícios com ele em casa”. Também no Hospital das Clínicas, Bryan faz consultas com uma neurologista a cada mês. Com quase dois anos de idade, ele ainda sofre com o déficit auditivo e visual, espasmos ao longo do dia, dificuldade para comer e imunidade baixa.
A neuropediatra Cristiane Aguiar afirma que essa assistência deve acontecer no mínimo nos três primeiros anos de vida, já que é nessa fase que mais ocorrem as alterações neurológicas e as crianças estão vulneráveis. De acordo com Aguiar, “é de extrema importância não deixar esses casos desamparados, por exemplo, se não houve fisioterapia os músculos atrofiam e não há como reverter o quadro posteriormente”.
A mãe de Bryan revela que durante os primeiros meses se sentiu sozinha. As pessoas tratavam seu filho com indiferença e ninguém a chamava para festinhas de crianças ou ia visitá-la após o nascimento de seu filho. “O que me chateava mais era o olhar piedoso para ele, não são coitadinhos como muitos pensam”. Hoje, Silva não se incomoda mais, passa a semana com o filho entre consultas e terapias, conhece outras mães que estão na mesma situação, o que gera trocas de experiências.