O cotidiano, os rituais e as questões dos índios Pankararu que vivem no Real Parque, zona sul de São Paulo
“Hoje sou eletricista, formado pela vida”, conta o senhor pernambucano de 63 anos, que veio para a capital paulista nos anos 1970. Vinte anos antes, começou um movimento de migração de indígenas que, expulsos por posseiros, vinham para São Paulo para trabalhar na construção do Estádio do Morumbi e do Palácio dos Bandeirantes, na zona sul da cidade. Isso é o que diz o índio descendente da aldeia Pankararu, Cícero Antônio dos Santos.
Os Pankararu vivem em vários estados do Brasil: São Paulo, Minas Gerais, Alagoas e Pernambuco, e somando possuem mais de cinco mil indígenas espalhados pelo país, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. A história dessas pessoas remete à falta de políticas públicas para demarcação de terras, que tramitam no Congresso Nacional sem aprovação.
Recostado a um poste na comunidade Real Parque, na zona sul de São Paulo, o morador Fernando Araújo, que cresceu próximo à aldeia, conta que também saiu de sua terra natal diversas vezes para garantir sustento para a família. Assistindo ao filho jogar bola, lembra como casou com sua mulher, índia Pankararu, quando tinha 18 anos, na Bahia. Para ele, antigamente os índios eram vistos com um olhar generalizado e preconceituoso. Hoje, são reconhecidos por órgãos públicos, mas a ideia de que são uma massa uniforme de pessoas semelhantes, sem distinção de aldeias, raízes históricas e cultura, ainda persiste. Araújo fala também sobre os preconceitos que sofrem os Pankararu, assunto já em pauta há décadas. Há registros de que índios omitiam suas raízes para conseguir emprego, com medo de discriminação. Na capital paulista, apenas um terço dos índios residentes trabalhava e geralmente disputavam empregos de baixa remuneração, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Parte do povo Pankaruru desenvolveu o Projeto Casulo, uma organização da sociedade civil que estimula atividades de entretenimento, cultura e interação comunitária para os residentes do Real Parque e do Jardim Panorama. “Criaram a associação para dar mais visibilidade para os indígenas”, conta Selma Gomes, uma das lideranças da Associação Indígena S.O.S. Comunidade Indígena Pankararu. Em seu trabalho como assistente social, Gomes luta pela garantia de seus direitos e o respaldo pela dignidade cultural do grupo e confirma o que diz o eletricista Cícero dos Santos sobre o passado dos Pankararu. “Muitos se alojaram no Real Parque justamente pela proximidade a essas obras. Há Pankararus espalhados por toda a cidade, mas a comunidade daqui já se tornou sólida”.
A líder indígena conta que um dos grandes motivos para a migração acontecer é a perda de terra indígena decorrente da disputa com os grileiros e o desmatamento massivo, que já ultrapassa os 45% da vegetação da Caatinga na região Nordeste, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em 2015. Isso ocasiona a transferência deles para terras menos propícias para o plantio, improdutivas e agravadas pela seca.
Marco Antônio Silva dos Santos está passeando com sua filha na comunidade. Ele é médico formado pela Universidade de São Paulo (USP) e especializado em Saúde Indígena pela Unesp, trabalha no posto de saúde que fica dentro da Real Parque e atende os Pankararu. Ele conta que existe um sistema diferenciado para atendimento médico indígena: há um pajé no posto que atua nas especificidades da medicina indígena, composta por rituais repletos de rezas, cantos e banhos. “A tradução e compreensão culturais são necessárias”. O médico afirma que não se deve tomar os costumes medicinais dos indígenas como primitivos. Outro método é o uso de remédios naturais para tratar os pacientes, como o procedimento com a casca de quixabeira, que é deixada por um dia submersa em um copo d’água e usada como antiinflamatório. Além de respeitar o tempo de ação e recuperação espirituais que suas culturas implicam.
Luta pelo resgate
O Sarau Casulo acontece todo mês de abril na Escola Municipal de Ensino Fundamental José de Alcântara Machado Filho no dia 29 de abril, e foi organizado pela Associação Indígena S.O.S Comunidade Indígena Pankararu. O evento quer resgatar a cultura tradicional que pode ser perdida dentro da cidade grande, além de lutar pela demarcação de suas terras. Estavam presentes membros das aldeias Pankararu de São Paulo e Kariri-Xocó de Alagoas.
Depois de uma partida de futebol entre os Pankararu, a quadra foi o palco das apresentações, como a dança dos praiás, em que os participantes usam um grande saiote de palha e uma máscara. Cada um possui símbolos e cores específicas, cujos significados não são revelados para quem não é do povo. Alguns jovens e crianças dançam sem a vestimenta, porém com desenhos de tinta branca no rosto e torso. Três indígenas conduziam o grupo. Eles cantam e manuseiam o chocalho que traz musicalidade à apresentação. O restante permanece em um movimento giratório pela quadra. A dança terminou numa reunião para todos os Pankararu.
Apesar da cerimônia dos Pankararu ter sido realizada em São Paulo, os rituais indígenas, em geral, são escassos na cidade, pelo desconforto e risco de discriminação dos índios. Segundo Qaueanqa, indígena da tribo Kariri Xocó, que retorna à sua aldeia de 15 em 15 dias para ver o restante da tribo. Warudza, também nativo da Kariri Xocó, conta que além do preconceito, a maior parte dos rituais necessita do pajé e do espaço da mata para acontecer. Alguns costumes são a Festa e Colheita do Murici e a Corrida do Imbú, ambos relacionados a frutos típicos da região da aldeia.
Tanto o espaço para realizar esses eventos quanto o atendimento médico diferenciado foram conquistados por meio da luta desses e de outros indígenas. No Sarau Casulo houve um momento onde todos se reuniram com placas pedindo a demarcação de terras para os índios, fato que ainda pode ser adiado por tempo indeterminado já que a Funai os considera “índios desaldeiados” por viverem longe de suas respectivas terras.
Junto a esse cenário negativo, o governo federal extinguiu cerca de 90 cargos na Fundação Nacional do Índio em 2017 e cortou 50% dos fundos destinados à ela, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA). Os Pankararu e outros indígenas esperam impactos negativos, já que a Funai operava apenas com 36% da capacidade total de pessoas e demonstrava lentidão no processo de demarcação de terras e de garantir os direitos específicos dos indígenas, a exemplo da PEC 215, que pretende alterar a Constituição para transferir ao Congresso a decisão de demarcar as terras indígenas, que tramita há mais de 16 anos no Congresso e ainda não foi aprovada. Em volta das pessoas que se encontram sentadas no chão há um cartaz inclinado na parede: “Demarcação-Já! Nação Pankararu”. O desenrolar da história dessa tribo e de muitas outras em semelhantes condições continua.