A cena independente paulistana e o reflexo da produção musical nacional
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Com a frase, Oswald de Andrade dá início ao Manifesto Antropófago, conhecido por ditar as atitudes estéticas da geração modernista brasileira dos anos 1920. Publicado originalmente em 1928, o texto contrapunha e assimilava as vanguardas europeias à arte nacional. Dessa forma, estabelecia-se uma terceira margem do fazer artístico brasileiro: nem europeizado, nem ufanista. Ou, como poetizou Antonio Candido, construía-se “um outro mundo, o das utopias”. Apesar da longevidade do texto, seu fantasma ainda ronda o imaginário da produção criativa nacional. Uma das diversas linguagens das artes que melhor representa a nossa capacidade de ressignificar estrangeirismos é a da música. Mais especificamente, a música que se alimenta às margens do mercado cultural e a que se dá o rótulo de “independente”.
Inspirados pelas pequenas gravadoras norte-americanas, bem como pela lógica punk do do it yourself (“faça você mesmo”), cada vez mais artistas despontam no panorama musical brasileiro. Em São Paulo, o cenário não é diferente.
“Comparando com várias épocas, a música aqui no Brasil está no seu melhor momento”, declara o músico Kiko Dinucci. Nascido em Guarulhos (SP), o guitarrista integra os grupos Passo Torto e Metá Metá, de MPB e jazz, respectivamente, e tocou em obras substanciais para o cenário musical brasileiro dos últimos anos, como A Mulher do Fim do Mundo (Elza Soares, 2015) e Nó Na Orelha (Criolo, 2011). Gravados de maneira independente, ambos foram alçados ao mainstream como novos cânones da MPB. “Nunca se viu tanto disco independente sendo lançado, tanta gente nova surgindo por aqui. Quando toco lá fora, com o Metá Metá, tenho a percepção de que existe uma crise; como se tudo [em termos sonoros] já tivesse sido esgotado. Mas aqui não. Aqui a gente tem nosso jeitinho específico de fazer [música], que ainda tem muito a ser explorado.”
A “independência” na música ainda é uma questão controversa. Para Thiago Galletta, autor do livro A Cena Musical Paulistana dos anos 2010 (Editora Annablume), a discussão nasce a partir do que se entende por “produção independente” e “música independente”. “Ser independente implica ter liberdade em relação às majors”, diz o DJ e pesquisador, citando grandes conglomerados de distribuição fonográfica como Warner Music, Sony Music Entertainment e Universal Music.
No entanto, se os músicos fogem do “grande mercado” a fim de conquistarem maior independência criativa, é necessário que eles atuem como empreendedores de si mesmos. Alguns optam pelo auxílio dos editais de patrocínio, como é o caso da Natura Musical e o da Oi Música. Tais empresas estabelecem, segundo Galletta, “contratos de parcerias com muitos dos artistas independentes, oferecendo suporte e promoção aos seus trabalhos ao mesmo tempo em que valorizam suas marcas e imagem social”. Outra saída é por meio dos selos independentes, procurados como intermediadores entre bandas e mercado cultural.
Em São Paulo, um dos principais nomes que se projetam nessa cena é o da Balaclava. Fundado em 2012 pelos músicos e sócios Fernando Dotta e Rafael Farah, o selo foi criado para lançar o disco Unrest, do grupo Single Parents o qual integram desde 2009. “Naquela época, os selos por aqui ainda não eram tão fortes”, relembra Dotta. “No começo, queríamos reunir bandas que tinham a ver com nós. Não necessariamente pelo som, mas pelo ideal. Queríamos correr atrás de bandas que precisavam de ajuda, fosse na distribuição dos discos, para fazer uma ponte com a imprensa, ou até mesmo na parte de divulgação final do trabalho”.
Com a capitalização dessa cena musical, o fazer artístico e criativo acaba inevitavelmente apropriado pela indústria cultural. É neste ponto que os termos “produção independente” e “música independente” divergem. Tanto para Galletta, quanto para Dotta, a noção do que é ser independente transcende a esfera mercadológica, podendo ser considerada uma questão estética e identitária. “Somos uma cena forte nos festivais e em alguns veículos especializados, mas ainda não temos o reconhecimento das rádios”, afirma o coidealizador da Balaclava. Para o pesquisador, a complexidade do mercado dificulta a distinção entre o que é mainstream e o que é independente. “Existem associações bastante intrincadas entre um universo e outro. A independência se reflete na possibilidade do artista ter um controle maior sobre o seu projeto”, arremata Galletta.
Vanguarda
Em São Paulo, grande parte da nova linhagem de músicos considerados independentes descende esteticamente do movimento artístico que ficou conhecido como Vanguarda Paulista. Consagrado pelo lirismo contestador e pelo experimentalismo sonoro, o grupo revelou nomes como Itamar Assumpção e Tetê Espíndola. Originário nos derradeiros anos da década de 1970, o coletivo foi responsável pelo “primeiro boom independente”, como aponta Thiago Galletta em um artigo divulgado pela publicação eletrônica Música Popular em Revista. Embora o Brasil já tivesse vislumbrado experiências independentes anteriores – como em 1972, com o lançamento do LP Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, pela gravadora pernambucana Rozenblit – era a primeira vez em que se falava de uma “articulação coletiva de uma geração de artistas em torno da discussão e viabilização da produção fonográfica independente”, como afirma Galletta.
Segundo o pesquisador, a capacidade de “articulação coletiva” aperfeiçou-se ao longo dos anos com a “democratização da internet”. Graças ao fortalecimento das redes sociais, o intercâmbio entre trabalhos independentes torna-se mais recorrente, e a troca de informações, mais rápida. “As novas condições técnicas possibilitam o manejo direto e simultâneo das esferas de produção, reprodução e distribuição musical, por parte tanto de pequenas gravadoras e selos, quanto dos próprios artistas individualmente”, escreve no artigo Para Além das Grandes Gravadoras: Percursos históricos, imaginários e práticas do “independente” no Brasil.
Ainda de acordo com ele, cada vez mais artistas recorrem à cena independente não como uma estratégia transitória – isto é, como propulsor capaz de alçá-los a uma gravadora de grande ou médio porte. Conforme Galletta relata, baseado em um relatório divulgado pelo Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Acesso à Informação da USP (Gpopai-USP), os músicos e bandas têm buscado com maior ocorrência “sobreviver nela [cena independente] de forma continuada”.
A necessidade de estar imerso na cena surge pontualmente nos trabalhos do “Clube da Encruza”. Brincadeira com o nome do consagrado Clube da Esquina, a “versão paulistana” do grupo de músicos mineiros traz uma veia sonora mais urbana e caótica. Formado por gente como Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Rômulo Fróes e Kiko Dinucci, o “núcleo”, como também é conhecido, vem ganhando respaldo da crítica especializada desde a segunda metade dos anos 2000.
Outro exemplo de articulação coletiva na cena independente paulistana é o Sêla. Idealizado pela cantora e compositora Camila Garófalo, o coletivo é também integrado pelas publicitárias Laíza Negrão e Fernanda Malaco, pela produtora cultural Marina Coelho, pela jornalista Flora Miguel e pela designer Fernanda Martinez. Segundo Miguel, essa “aliança de profissionais de diversas áreas” surgiu de um sentimento generalizado da falta de protagonismo feminino na cena musical. “A mulher na música é muito estigmatizada”, afirma, ressaltando ainda o fato de a curadoria de alguns festivais valorizarem somente músicos homens. “Sentíamos falta de um evento que fosse conduzido por nós e que mostrasse que o espaço da mulher na música já existe e que ele é nosso”.
Pensando em uma forma de unificar e dar evidência às mulheres na cena musical, a aliança organizou, em São Paulo, o primeiro festival Sêla. Realizado entre 1º e 5 de fevereiro de 2017, o evento reuniu nomes como As Bahias e A Cozinha Mineira, Tássia Reis, Tiê e Luana Hansen. Além dos shows, o festival contou com DJ sets e rodas de debates protagonizados e produzidos por mulheres. “As mulheres estão na música, assim como os homens, mas é um espaço que fica meio difuso e que precisa ser ocupado e evidenciado”, declara Flora. “Tem muito homem no mercado [musical], isso é uma questão estrutural do patriarcado. Desde cedo os homens são incentivados à música, a tocar algum instrumento. Já a mulher é incentivada a outras coisas. Quando nós nos juntamos nessa aliança, ganhamos unidade, uma força maior”.
Licença poética à parte, pensando na vitalidade da cena paulistana, talvez seria necessário a adição de mais um advérbio à linha inicial do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. “Só a antropofagia nos une. Musicalmente”.