Considerado crime em São Paulo, o pixo continua se multiplicando pelos muros da cidade
Lang pixava na Avenida Conceição, local escolhido porque não havia deixado sua marca ali ainda, até que resolveu desviar seu trajeto inicial. Virou à esquerda, descendo uma rua que dá para a Vila Sabrina, na zona norte da capital paulista. Ele quis ir até uma região comercial, talvez pela sensação de maior adrenalina, já que a vigilância é redobrada por seguranças contratados pelos comerciantes para passar as madrugadas nas ruas, protegendo os estabelecimentos. Chegando lá, o pixador observou a rua praticamente vazia. Para confirmar se não havia ninguém, olhou para um lado, para o outro e sacou a lata de spray, chacoalhou e começou a pixar em uma porta de aço de uma loja. Pouco antes de terminar sua pixação, alguém assobiou chamando a sua atenção, indo na direção, a passos rápidos. “Molhou. É segurança de rua”.
O jovem comentou que alguns seguranças de rua ou até mesmo pedestres apenas chamam a atenção dele e de outros pixadores, mas há outros que usam abordagens mais violentas, como ameaças e agressão física. “É embaçado isso, mas é um risco que se corre e o pixo existe por isso mesmo, porque é proibido.” Proibição. Adrenalina. Anarquia. São esses os três pilares que levaram Lang a pixar logo quando completou a maioridade. Antes disso, já treinava seus traços em cadernos e lousas de escola. “No meu caso é pela adrenalina mesmo, de fazer algo proibido, subir um muro, fazer escalada”. Hoje, ele evita correr grandes riscos, tem uma filha e uma namorada, além de ser garçom de um restaurante.
Durante a caminhada pela avenida, Lang comentou que era a primeira vez que pixava em 2017. Após alguns minutos andando, escolheu uma porta de aço branca no outro lado da avenida. Foi meticuloso e se concentrou durante todo o processo de pixação, sem perder a atenção nos movimentos e sons da rua. Quando necessário, interrompia sua pixação para disfarçar, enquanto carros esporadicamente passavam na fria madrugada paulistana. Quando terminou o seu trabalho, o pixador deu um sorriso satisfeito e contemplou por alguns segundos a porta de aço, agora marcada com sua pixação. Pouquíssimos pedestres andavam pela Avenida Conceição às duas horas da madrugada, assim como poucos carros passavam pelas ruas. Após a primeira pixação realizada, Lang revelou evitar pixar residências em más condições. Sente pena em dar prejuízo àqueles que não podem pagar a manutenção da parede pixada. “Mas já aconteceu muitas vezes de vir gente pra cima de mim porque eu estava pixando, sendo que a pessoa nem é dona do imóvel. Aí eu já acho meio nada a ver, porque é só um muro e os caras se importam com isso, com uma coisa que nem é deles”.
Para ele, a questão do direito de propriedade não faz sentido, sobretudo dentro da sua ótica anarquista. “’Está certo que vivemos em uma sociedade capitalista, daí tem pessoa que batalha por anos para conseguir uma casa pra dizer que é sua. Mas vejo gente que dá importância muito grande para isso (a pixação), sendo que tem tanto problema aí no mundo que precisa ser solucionado”. Indignação também é a tônica no discurso do pixador Mateus*, que afirma que a afronta ao sistema é a principal razão que o leva a pixar. “O Estado está pouco se lixando para quem eu sou, o que eu faço da vida, das minhas dificuldades. Desde que eu me conheço como pessoa, já sou um ‘fodido’, então luto contra essa minha condição”. Segundo o pixador, a sociedade o vê em posição similar a de um ladrão ou assassino.
Logo no início de seu mandato, o prefeito de São Paulo, João Doria, sancionou o projeto de lei 56/2005 que prevê multa de cinco mil reais para quem for pego pixando e de dez mil reais para quem pixar monumentos e bens tombados.“Se eu faço uma atividade criminosa, considerando a lei atual? Faço, mas eu não mato, nem roubo, nem trafico e todos me veem como alguém que faz isso”, completa Mateus. Em 2017, o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil, especializado em investigar crime organizado, passou a investigar e mapear, também, grupos de pixadores.
Lang afirma que há pixadores que lidam até com o crime organizado, mas, segundo ele, a maioria dos que pixam também trabalham, estudam, possuem família e utilizam a pixação para exporem os problemas das suas comunidades. “O pixo, para mim, é isso. É protesto, lutar contra uma sociedade que me julga e um governo que está pouco se “fodendo” comigo e com a minha quebrada, é uma forma de se indignar, porque eu tô com a cabeça a milhão pensando nos problemas, em como nós somos invisíveis na sociedade”.
No point
Um ponto de encontro de pixadores bastante popular nas noites de quinta-feira em São Paulo, a Rua Dom José de Barros, na República, estava mais vazia que o normal naquela noite de 30 de março. Normalmente, os pixadores se encontram nesses points para desenharem seus traços nos cadernos de outros pixadores, de forma a conhecer o trabalho do outro, além de ser um espaço para troca de ideias e reencontro de amigos.
Ali, os jovens conversam tranquilamente enquanto bebem, fumam e trocam pixações nos seus cadernos. Entre eles, está Mateus, pixador desde 1987, e seu amigo, Cléber, que não está na “ativa” desde 1999, quando nasceu seu filho e precisou parar de pixar, mas sem deixar de comparecer ao point. Ambos são da zona sul, com suas marcas já espalhadas pela cidade. Já Roma* de 23 anos, morador da Brasilândia, pixa há menos tempo. Afirma que faz isso desde os 15 anos, enquanto mostrava a tatuagem com as letras formando a palavra “Roma”, seu apelido. “É minha tag, né, então tatuei em minhas mãos, fora as outras tatuagens que tenho no meu corpo. Curto para caramba esse negócio de tatuagem, acho uma puta arte, um brother meu que fez todas essas tatuagens”.
Mateus confirma haver maior repressão por parte da Polícia Militar nessa região. “Experimenta ficar aqui até 10 da noite, para ver se a PM não vem aqui dispersar o nosso ‘rolê’. A gente aqui não está fazendo nada, só estamos trocando ideia, encontrando a galera da velha guarda, os mais novos, e a polícia quer saber de diálogo? Nem quer saber, já chega na violência mesmo”. Nos primeiros cinco meses da gestão Doria na prefeitura de São Paulo, a Guarda Civil Metropolitana (GCM) prendeu 126 pichadores.
Lang reforça esse cenário e lembra que já levou um soco de um policial durante uma abordagem, além de ter parado na delegacia, liberado após assinar documentos. “Antes de sair proibindo, multar, colocar pra prender, a Prefeitura deveria entender os problemas reais da cidade, porque pra mim esse tipo de combate é mais propaganda mesmo”. Para Lang, tal combate é uma forma de silenciar aqueles que lidam diretamente com diversos problemas da cidade e encontram na pixação uma forma de expressar descontentamento. “Enquanto existir essa desigualdade na cidade, ainda vai ter gente protestando e vários encontrarão suas vozes através do pixo”.
“Pixação é arte”
Além de ser uma forma de protesto, Lang considera pixação como um hobby e arte. “É arte da sua forma mais pura, porque ninguém cobra pra pixar, o cara tira do próprio bolso pra poder se expressar”. Durante o encontro no point, Roma diz que a pixação é uma forma dele de se expressar artisticamente. Empolgou-se ao mostrar as pixações fotografadas pela câmera do seu celular. “Cada pixador tem um traço único, inconfundível. Tudo bem alguns se parecerem com outros, na forma como a letra é feita, mas cada um que pixa possui a sua própria marca registrada. E é isso que me faz ser pixador, porque é arte na sua forma mais sincera”. Além de pixações, Roma possui diversos bombs ou block styles pixados ao longo da cidade. “Esse aqui, ó, fiz na Barra Funda. É um bomb que eu fiz lá no muro, olha o trem passando no vídeo, fizemos à luz do dia mesmo. E também tem esse aqui, é meu primo fazendo, o moleque está usando spray normal mesmo, só jorrando tinta, tá ligado?”.
O aparato, no caso, era completamente caseiro, desde o spray até a própria tinta. Segundo Roma, o preço da lata de tinta é caro para ele, o que o leva a improvisar. Além disso, a Prefeitura de São Paulo pune com multas de 5 mil reais aos estabelecimentos que venderem tintas do tipo aerossol para menores de 18 anos ou sem identificação do comprador. Roma mostra outros vídeos e fotografias, incluindo fotos pessoais da sua família. “Olha, tem esse grapixo também, fiz lá perto da minha quebrada. Também tem esse vídeo, os moleques lá do bairro aprendendo a pixar, louco né?”. Segundo Lang, a pixação possui diversas referências, dentre elas as letras góticas e capas de disco punk e metal dos anos 1970 e 1980, além de pixadores também usarem os grafites norte-americanos como fonte para seus traçados.
E se tratando de estética, há também pixações bonitas e feias, como afirma Lang. “Olha aquele muro lá, aquilo é um pixo bafeado. O cara não teve noção de tamanho das letras, fez tudo de qualquer jeito, pixo ruim assim pega mal entre os pixadores”. A visão de Lang e Roma contrasta com a justificativa do projeto de lei 56/2005 onde consta que “a grande maioria do patrimônio Municipal encontra-se verdadeiramente transformado em obras primas, de imenso mau gosto, e que de arte não tem nada, pelo contrário, são apenas um acumulado de símbolos e letras pixadas como códigos enigmáticos indecifráveis. O pichador terminou sua pixação, dessa vez um block style.
O percurso de Lang chegou ao seu fim em uma rua que cruza a Avenida Roland Garros. Eram três e meia da manhã e ele estava satisfeito por ter pixado pela primeira vez no ano. É comum que seus “rolês” terminem quando as latas de tinta acabam e Lang certamente pixaria um ou outro muro até chegar em sua casa se tivesse mais spray. “Trabalho e tenho uma filha para cuidar, aí fica foda mesmo. Mas quando eu era solteiro, não tinha preocupação, curtia dar rolê aí e pixar, é bom pra trocar ideia com os amigos”. Para ele, a limpeza da pixação é um dos objetivos do programa Cidade Linda de João Doria, que distingue àqueles que produzem arte urbana dos pixadores. Pelo fato da pixação estar sob os holofotes da mídia e da Prefeitura, Lang acredita que isso será um fator que até mesmo incentivará pixadores a continuarem seus trabalhos de tentar dar vida e colocar suas vozes nos muros e paredes da cidade.
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados