A polarização para além dos debates políticos
No começo de 2017, tive a oportunidade de iniciar algo que foi um grande desafio: dar aulas de redação em um cursinho popular. Em meio a tanta desorganização, própria de uma gestão popular e independente, algo que me incentivou nos sábados em que ali lecionei foi a breve caminhada da estação Portuguesa-Tietê até a escola em questão.
Quando comecei a dar aulas, estava lendo Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, livro da escritora norte-americana bell hooks. Apoiada, sobretudo, no pensamento de Paulo Freire, a autora fala sobre a pedagogia engajada, método em que professor e aluno precisam ser participantes ativos e o aprendizado, que deve ser mútuo, precisa se estender para os vários aspectos da vida, não apenas o intelectual e profissional. Ela define “teoria” da forma mais simples e bonita que já vi: é entender o que está acontecendo.
Ter contato com a obra à medida que estava tendo minha primeira experiência como professora fez com que eu refletisse cada vez mais sobre a sala de aula como ambiente em que a liberdade é possível e potente. Certo dia, entregamos aos alunos uma proposta de redação sobre a reforma da Previdência que, por meio da PEC 287/16, propõe mudanças constitucionais no que diz respeito a, entre outras coisas, o direito à aposentadoria. No cursinho, o assunto estava sendo tratado com particular intensidade naquela semana pois, no sábado anterior, alunos, professores e coordenadores se reuniram numa roda de conversa para debatê-lo. Quando pedimos que se manifestassem sobre os conhecimentos prévios que tinham a respeito da reforma, adquiridos sobretudo nessa roda, muitos estudantes falaram, cada um à sua maneira, sobre perda de direitos.
Nossa intenção era introduzir o assunto por meio de uma explicação sobre o que é a PEC. Ao questionarmos os alunos, no entanto, percebemos que eles pulavam essa parte, ignorando sua importância e iam direto à opinião. Mas como se forma uma opinião sem conhecimento de causa? Debater sobre o risco de opinar sem conhecer foi tão difícil quanto necessário. À nossa frente, alguns rostos confusos e outros revoltados. Piorou quando dissemos que, junto à proposta de redação, havia um desafio: o texto deveria ser favorável à reforma. “Eu não vou escrever”, “impossível”, “mas eu não acredito nisso”, “eu não concordo com a reforma”.
Após a leitura de um dos textosbase em que um jurista trazia argumentos positivos sobre a PEC, alguns estudantes se mostraram mais flexíveis, mas a maioria se manteve rigidamente em sua posição. Na aula seguinte, pouquíssimas redações foram entregues para correção. O problema, nesse caso, não é a impossibilidade de mudar de opinião uma vez que a sua já esteja formada. O que me intrigou, na verdade, foi a falta de um processo crítico de formação dessa opinião e a dificuldade em simular uma outra.
A proposta de que os alunos redigissem um texto dissertativo na defesa de um posicionamento que ia contra aquilo que eles de fato acreditavam não tinha como intenção fazê-los apoiar a PEC. Ao contrário disso, tinha por objetivo incentivar alguns pontos caros à escrita opinativa e, no contexto específico do cursinho, ao vestibular: 1) valorização da estrutura do texto; 2) entendimento sobre a importância da interlocução; 3) reflexão sobre a formação de opinião.
O que me chamou a atenção no episódio e me fez querer contá-lo aqui foi a sua recorrência. Casos assim são sintomáticos à medida que apontam para o desenvolvimento de um País cada vez mais polarizado e, por conseguinte, cada vez mais burro. Convicção não é o problema. Mas essa espécie de alergia que estamos criando ao pensamento do outro, e aqui enfatizo os grupos de esquerda – onde toda opinião parece revestida por uma aura de superioridade intelectual –, é danosa à democracia e ao debate público.
É danosa, sobretudo, à educação como prática de liberdade – sobre a qual nos fala bell hooks e sobre a qual se baseia a lógica de um cursinho popular. Liberdade não é sobre a reprodução de ideias, mesmo que se trate das ideias mais libertárias, mas sobre entender verdadeiramente o que está acontecendo.
*Larissa Rosa é casperiana, realizou iniciação científica sobre primeiras-damas e a construção da feminilidade. Para o TCC, analisa o discurso que legitimou o processo de impeachment de Dilma Rousseff.