O cenário underground contagia espaços públicos e atrai jovens para o Centro da capital paulista
No fim da tarde de um sábado, no Centro da cidade de São Paulo, uma cena se destaca: mesa e caixas de som são montadas em frente ao coreto da Praça da República. Jovens com vestimentas pretas em estilo punk, meia arrastão, coturno e sobretudos começam a se aproximar, trazendo consigo garrafas de Catuaba Selvagem e cigarros enrolados à mão. Ao cair da noite, a música eletrônica anima o público. É a Vampire Haus que está tomando corpo, uma festa ao ar livre gratuita, que reúne um público “soturno” numa autodeclarada “experiência sonora e visual”. De acordo com a organização da festa, que acontece há dois anos em espaços públicos do Centro da capital paulista, edições anteriores na Praça Ramos chegaram a aglomerar três mil pessoas.
A Lei do Artista de Rua (Lei 15.776/13), implementada em maio de 2013 pela Prefeitura de São Paulo, permite a realização de apresentações artísticas – maiores como a Vampire Haus ou menores como a presença de estátuas vivas e artesões – desde que se cumpram certas normas, como a gratuidade para os espectadores, a desobstrução do trânsito de pedestres e a finalização do evento até às 22 horas. Esse incentivo serviu para fomentar o surgimento de outras festas de rua no centro histórico de São Paulo e coletivos independentes de música e arte que se tornaram famosos no cenário, que trazem uma grande diversidade de sonoridades e atraem o público jovem paulistano.
O DJ e produtor cultural Mauro Farina está à frente da organização da festa Free Beats desde 2012 e compõe a primeira geração de agitadores desse movimento. Farina afirma que o conceito deu certo na época, pois os amantes de música eletrônica já estavam saturados do formato antigo dessas festas. “No Brasil é muito caro ir a baladas, se cobra não só pelo consumo, mas também pela entrada e o cachê dos artistas que se apresentam. Os clubes encareceram muito a experiência e o público passou a buscar acesso à música eletrônica nas festas de rua”. Além de funcionar como uma alternativa mais acessível, o movimento de rua chama a atenção para a necessidade de ocupar a cidade. Para Farina, tomar as ruas com manifestações artísticas traz não só mais tranquilidade e segurança para o espaço público, mas também “ressignifica” a relação das pessoas com a cidade.
Exemplo dessa tentativa de ocupar e “ressignificar” o uso do espaço público em São Paulo foi o Festival de Cultura Independente SP na Rua que aconteceu em setembro de 2015 e reuniu festas e coletivos urbanos para uma noite de intervenções artísticas na região central, aos moldes da Virada Cultural. Apesar de ter sido importante para articular os organizadores de festas, para Mauro Farina, que participou do evento com a Free Beats, a curadoria pecou em não incentivar que os coletivos se organizassem de forma mais sólida. “O SP na Rua foi bem importante, mas se tornou só mais um evento, não ajudou os artistas e produtores a se prepararem para se tornar algo mais fixo na cidade”. Sem próxima edição prevista, o festival fica apenas na memória.
O também produtor cultural e cientista social Marcio Black marca presença ativa na organização das festas de rua em São Paulo com o coletivo Sistema Negro. Ele destaca que as ações da gestão petista não foram um fator determinante, mas com certeza deram apoio para o desenvolvimento desses eventos. “A gestão Haddad era mais permissiva, facilitando a autorização para que acontecessem ou ainda ignorando as que aconteciam sem autorização, o que fez com que as festas crescessem muito”. Ainda que as iniciativas como a lei, o festival e a criação de uma cartilha de arte de rua disponibilizada pela Secretaria Municipal de Cultura tenham desburocratizado a dinâmica dos eventos culturais independentes, atualmente ainda existem brechas. Na mudança para a gestão de João Doria, nenhuma melhora no cenário foi incluída. “A questão agora é que com a gestão Dória tem havido uma grande repressão e um processo de dificultar a concessão das autorizações para que elas ocorram”, diz Black.
Sem uma organização estruturada, relatos de truculência na ação policial e falta de apoio da Secretaria de Cultura, esse movimento cultural pode estar perdendo força. Gabriel Rodrigues é frequentador assíduo das festas livres há cerca de três anos e diz sentir uma baixa considerável na quantidade de eventos. “Geralmente, aconteciam de duas a três festas ao mês, quase todo fim de semana”. Muitas festas voltaram a procurar clubes pela necessidade de ganhar dinheiro e o público que podia pagar acompanhou. Na visão de Farina, “a cena de rua se tornou mais elitista do que democrática, pois com as dificuldades e diminuição dos eventos as pessoas aceitaram pagar a entrada nos clubes, mas a periferia continuou organizando festas locais e menores”.
Apesar disso, Black não acredita que as festas venham a desaparecer de fato, mas que assumirão outro formato, mais alinhado ao perfil da gestão atual da Prefeitura: “É possível que as festas continuem acontecendo patrocinadas por marcas, que possuem uma relação melhor com a Prefeitura e podem articular estes eventos com mais facilidade”. Até o fechamento desta edição, a atual gestão da Prefeitura de São Paulo não respondeu à reportagem.