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Por Laura Simões e Renan Porto Edição #61

Histórias não registradas

Cinco relatos de empregadas domésticas evidenciam a distância entre a rotina de trabalho e a legislação trabalhista brasileira após quatro anos da “PEC das Domésticas”

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2017 aponta que existem seis milhões de trabalhadoras em funções domésticas no País, número que representa cerca de 15% do total de mulheres no mercado de trabalho brasileiro. Esse quadro faz do Brasil o país com o maior número de prestadoras de serviço doméstico do mundo, de acordo com dados coletados, em 2013, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

No entanto, existe a possibilidade do número ser ainda maior. Há uma dificuldade de tornar preciso a quantidade de trabalhadoras domésticas devido ao caráter informal das relações de trabalho da profissão. Apenas no ano de 1972, a categoria foi reconhecida pela Constituição Federal e, até a aprovação da chamada “PEC das domésticas”, em abril de 2013, alguns direitos garantidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) não se estendiam ao serviço doméstico, como o recebimento de, no mínimo, um salário mínimo mensal como salário, hora extra e jornada de trabalho de oito horas diárias.

Não é porque trabalho na casa de alguém que vou andar toda esculachada, não é verdade? – Sandra Silva, 42

A proposta de emenda constitucional garantia ainda mais 13 direitos às domésticas, como o adicional noturno, a obrigatoriedade do recolhimento do FGTS, seguro-desemprego, salário-família, auxílio-creche e pré-escola, seguro contra acidentes de trabalho e indenização em caso de demissão sem justa causa. Apesar de aprovada pelo Congresso em 2013, a PEC foi regulamentada apenas em junho de 2015.

Em 2017, cerca de 70% das funcionárias domésticas trabalhavam sem carteira assinada, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Logo após a sanção da PEC, houve um aumento de mais de 60% no número de funcionários domésticos com o FGTS recolhido, atingindo 1,3 milhão de trabalhadores. Apesar do número ainda ficar aquém das seis milhões de empregadas na categoria, a presidente do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstica), Janaína Mariano de Souza, entende o cenário como positivo e acredita na efetividade das determinações da emenda. Para Souza, após anos de luta sindical, a emenda foi capaz de trazer finalmente o devido reconhecimento ao serviço doméstico e equiparou a categoria às demais existentes no País.

O jurista Marcos Ciccariano Fantinato, especialista em Direito do Trabalho, percebe o quadro com menos otimismo. Além de considerar que a Lei Complementar 150/2015, resultante da “PEC das Domésticas”, omite direitos indispensáveis como adicional de insalubridade, o jurista é cético quanto à capacidade da nova legislação do trabalho doméstico afetar a vida prática dessas trabalhadoras. De acordo com o jurista, isso fica claro uma vez que, ainda hoje, existem ações trabalhistas questionando o direito a férias, por exemplo.

Sempre dou conselho para as meninas lutarem pelos seus direitos – Patrícia Nascimento, 37

Outra crítica feita por Fantinato é direcionada à plataforma que contempla as obrigações tributárias do empregador, o e-Social. Ficou estabelecido que o recolhimento de encargos, como o FGTS e o seguro desemprego, devem ser realizados pelo contratante por meio do site, porém, devido à burocratização excessiva do sistema, o jurista entende que ele não foi pensado para o empregado doméstico comum e menos ainda para o empregador. “Não é aceitável que o empregador tenha que assistir a 20 vídeos tutoriais para saber manejar o e-Social, o site criou uma experiência muito complexa”, afirma.

Fantinato aponta que, garantindo mais direitos, a Lei Complementar 150/2015 tornou o contrato de trabalho menos atraente, mais caro e burocrático e considera uma falha na legislação a ausência de medidas que incentivem a contratação, sobretudo em um momento de crise econômica. Janaína Souza ainda indica que, diante disso, surgiram efeitos colaterais indesejados pelos idealizadores da PEC.

Muitas das domésticas que se encontravam desempregadas, por exemplo, acabaram optando pela terceirização, afirma o fundador da empresa Maria Brasileira, Eduardo Pirré. O empresário conta que sua empresa, que presta serviço doméstico terceirizado, registrou um aumento de quase 40% no número de mulheres entrando em contato em busca da terceirização após a aprovação da PEC das Domésticas.

Outro efeito indesejado apontado pela presidente do Sindoméstica é o crescimento do trabalho informal e das demissões. Maria Gomes, de 77 anos, acabou abdicando da funcionária que prestava serviço doméstico há 17 anos em sua residência. A dona de casa conta que o principal motivo da demissão foi o aumento dos encargos trabalhistas decorrentes da nova lei complementar. Vivendo com uma aposentadoria de 2500 reais por mês, Gomes e seu marido destinavam mais da metade da renda para o custeio da funcionária, pagando cerca de 30% em impostos sobre o salário. Desde o ano passado, Gomes assumiu as tarefas domésticas e, com o avançar da idade, teme por sua saúde devido ao desgaste envolvido com as tarefas braçais. “Hoje não é qualquer um que pode manter uma empregada e, se continuar desse jeito, a profissão não vai existir mais”, acredita.

A dona de casa alega que sua ex-funcionária ainda não conseguiu um novo emprego e, por esse motivo, teria sido prejudicada pela chamada PEC das Domésticas. “Por mais que o salário não fosse nada de mais, eu pagava em dia e sempre a tratei muito bem. Então, com certeza ela preferia estar trabalhando em casa”. Gomes ainda afirma defender o livre acordo entre patrões e empregados e considera rigorosas muitas das imposições da emenda. Entre elas, o horário de almoço estabelecido em duas horas. Para ela, isso seria adequado a uma empresa, mas não a uma casa de família. Segundo ela, a própria funcionária se negava a acatar a imposição e preferia adiantar o serviço para poder sair mais cedo do trabalho.

Ela ficava ameaçando de me mandar pra Febem, dizendo que eu era irresponsável e no final nem queria me pagar – Beatriz Silva, 16

Maria Gomes também vê problemas na plataforma do e-Social. A dona de casa conta que às vezes empacava e ficava horas tentando entender o funcionamento do sistema, com medo de cometer erros que prejudicassem a funcionária ou a si própria. Hoje, Gomes é procurada a todo momento por sua ex-funcionária, que está há quase seis meses esperando seu seguro desemprego devido a um erro em seu número de identificação no Ministério do Trabalho. A dona de casa alega que sua filha teria recorrido a um contador para cuidar dessas questões.

Professor titular de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Pinto Martins alerta ainda para a distância que há entre o estabelecido legalmente no ambiente do serviço doméstico e o que acontece na prática. Martins aponta que sempre existiram muitas mulheres ganhando abaixo do salário mínimo, por exemplo, e que isso seria muito difícil de ser coibido. Diante desse quadro, o professor não hesita em afirmar que a Lei Complementar 150/2015 não coloca fim a essas práticas.

Ainda é cedo para traçar com exatidão os reais efeitos no mercado de trabalho da atual lei. Contudo, é fundamental refletir sobre como somente medidas legais seriam capazes de transformar na prática o cotidiano dessas trabalhadoras. Os relatos de cinco dessas mulheres sobre suas trajetórias apresentados nessa reportagem, atestam que há ainda um longo caminho a ser percorrido para que essas profissionais sejam livres para trabalhar sob as condições que entenderem como as mais justas e dignas com garantias trabalhistas mínimas que vão além de seus salários.

Confira os relatos das domésticas abaixo:

 

Patrícia Nascimento, 37

Eu comecei com 19 anos de idade por opção mesmo. Na primeira casa, trabalhei um ano e meio, e já dormia no serviço. Eu sempre dormi. Era puxado, eles davam muito trabalho. Só que quando criança dar trabalho é uma coisa, agora, quando adulto dá trabalho, aí não deu. Meu patrão batia na cachorra. Uma vez, ele saiu correndo com uma faca atrás do sobrinho. Eu liguei pra mãe dele e ela disse “se vira”. Eu falei, “não, não tenho que me virar, eu sou empregada, não sou a mãe dele”. Chegaram até a me prender no quartinho. Só consegui sair porque eu comecei a gritar e a vizinha abriu a porta, se não eu ficaria lá. Eles abusavam de todo jeito, eu era meio bobinha. Não pagavam hora extra, não tinha nada disso.

Depois, trabalhei numa outra casa antes de entrar na que eu estou hoje, trabalhei cinco dias. Foram os cinco dias piores da minha vida. Às 6 horas, eu tinha que estar na cozinha e não parava o dia todo. Eu tinha que comer em dez minutos e a minha comida era diferenciada da deles. Eles até trancavam a dispensa. Eu só comia os restos. E eu me lembro de que ela me veio com um pão até mofado. Sabe, dava coisas mofadas, estragadas. Eu lembro que era Semana Santa e ela veio com um peixe, “não, Patrícia, não dá pra você, eu não tenho dinheiro”. Aquilo me deu uma revolta muito grande. Eu levantei, terminei meu serviço e falei, “para mim não dá”. Eu consegui sair por não ter filho, por não pagar aluguel. Na época, morava com meus pais, então eu não precisava passar por aquilo. Eu sempre dou conselho para as meninas lutarem por seus direitos, pelo registro. Mas, quando a pessoa não tem uma escapatória, acaba aceitando.

Eu sempre fui registrada. Apesar de tudo, ainda acho que o registro é necessário. Mas se fosse seguir à risca, o registro não funciona. Onde eu trabalho não tem horário, lá não tem ponto, não tem nada. Então é acordo de boca entre a gente. A mulher que eu cuido janta às 21h, para ficar teria que pagar hora extra. Mas qual é a patroa que dá férias duas vezes por ano? Quando tem feriado, alguma coisa, já emenda. Então, uma coisa compensa a outra. Poucas têm essa liberdade.

Mas isso também não é tão bom. Às vezes você tem tanta intimidade que perde aquele contato de patrão e empregado. Quando fui pedir aumento fiquei sem jeito por causa disso, acaba misturando. Ela fala direto para eu sentar na mesa para comer com ela. Mas eu sei me colocar no meu lugar. Às vezes, é o momento deles. Eu sei que ela é minha patroa e eu sou a empregada.

Beatriz Silva, 16

Eu comecei com 14 anos. Morava com a minha mãe e já fazia as coisas lá. Eu arrumava a casa, lavava as roupas, fazia tudo e para minha mãe nada estava bom. Ela sempre reclamava comigo e mandava ir morar com o meu pai. Não estava dando. Aí, a minha irmã estava procurando alguém pra olhar o filho dela, de três anos. E pensei que seria melhor.

Mas morando com ela vi que não era nada disso. Ela ia me pagar e tudo. Mas não deu certo, porque fui perdendo os dias na escola. Ela ficava me incentivando a faltar. Eu não conseguia estudar direito, tinha que ficar olhando o menino. Achei que eu ia reprovar.

Minha irmã não via que ela tinha um filho e tinha que arcar com a responsabilidade dela. Ela chegava tarde e ainda queria sair. Ela me explorava mesmo, sabe? Tinha que ficar olhando ele das duas horas da tarde até a meia noite. E quando chegava, se ela precisasse à noite eu tinha que estar acordada. Então, dormia bem tarde e acabava não indo pra escola. Não tinha hora.

Sem falar no dinheiro que ela me combinava, ia me pagar 200 por mês. Eu aceitava porque eu estava morando na casa dela. Daí ela pegava e no dia me dava 100 reais. Isso quando ela não pegava o dinheiro de volta, falava que tinha que pagar não sei o quê. Depois ainda ficava dando risada da minha cara. E se eu reclamasse ela ia me expulsar. Eu não tinha o que fazer. Não ia morar com a minha mãe. Não falava com meu pai. Era lá ou lá.

A minha outra irmã também, a mesma coisa. Trabalhei para ela no começo do ano, ia receber o mesmo, 200 reais. Ela ficava ameaçando de me mandar para FEBEM, dizendo que eu era irresponsável e no final nem queria me pagar. Falando assim, a pessoa acha pouco. Mas na prática, você vai passando isso todo dia é horrível, de chorar mesmo. Trabalhar desse jeito não dá.

Hoje, eu continuo procurando serviço de doméstica para melhorar de vida. Eu aceito o que vir, com ou sem registro. Falam que sem curso você não consegue emprego, mas sem emprego você não consegue pagar o curso. Não tem o que fazer.

Luciana Cabral, 33

Eu devia ter uns 13 anos e comecei para poder comprar uns CD’s da Laura Pausini (risos). Porque meu pai era assim, ele colocava comida na mesa e só. Então tinha aquela frustração de não ter. Aí, uma professora falou, “eu precisava de alguém pra ficar com os meus filhos, mas teria que ficar em casa”. Talvez isso na vivência dela era normal. Mas, hoje, com toda a informação que tenho me pergunto como conseguia. Fazia tudo, cozinhava, lavava, passava, cuidava das crianças. E, cara, eu era uma criança também. Na época não tinha consciência disso.

Acabei largando a escola por dois anos, era muito difícil conciliar. Ela até me incentivou, mas o que eu mais ouvia do meu pai era, “aprendeu a escrever o nome já tá bom”. Só que gostava muito de estudar e de escrever. A poesia me salvou de um monte de coisa. Acho que foi uma revolta contra o meu pai. Minha família era ultraconservadora, ultra machista. Mas eu sempre soube que era lésbica. Era muito difícil assumir. Toda vez que estou escrevendo alguma coisa penso “putz, não era só assinar o nome, era algo mais, era entender mesmo o que estava lendo, é sentar com qualquer um e poder conversar sobre tudo, poder ler o mesmo jornal que o filho da patroa e poder falar a mesma língua que ele”. Você diz que é doméstica e a pessoa toma um susto, “eu não acredito que você faz isso, você, uma mulher tão instruída”. O preconceito está no achar que a doméstica não pode estudar. No achar que o sustento que coloco na minha mesa não é digno.

É claro que eu já ouvi histórias horríveis. Só que graças a pessoas que encontrei não tenho nada para contar desse tipo. E se você pegar o meu caso entre 30, talvez ele seja o único e aí é que dói. Se eu contar as histórias que minha mãe conta como diarista, que você não podia comer a mesma comida, não podia usar o mesmo banheiro e se você procurar vinte histórias dessa hoje, você encontra. Eu não vejo um lado mais humano, isso é muito triste. “Faz o seu trabalho que eu te pago e pronto”. As pessoas te podam, tem pessoas que nem vão me ouvir se eu disser minha profissão. Toda vez que eu estou falando com alguém, “nossa, você é um achado”, mas não sou. Talvez eles não tenham parado para conhecer as pessoas que trabalham na casa deles. Vai ter gente que vai ver essa matéria e vai pular na hora, porque não quer saber. Esse tipo de coisa não é com PEC, registro, que vai mudar, é complicado.

De tudo que a gente vê, a carteira assinada é positiva. Mas se hoje estou sentindo que esse valor retirado pelo INSS vai fazer falta? Sim, porque, com as coisas que vêm acontecendo no país, eu não estou vendo retorno. Se precisar disso no futuro, sei que não vou ter, estou ciente disso.

Hoje tenho dois empregos. Trabalho terças e quintas como diarista e segundas, quartas e sextas como registrada. Eu tenho só o sábado e o domingo para me aproximar da minha família. Eu tenho medo que o meu filho passe a me ver apenas como uma provedora daquilo que ele precisa pra sobreviver.

Pensamentos
por Luciana Cabral

Detenha o tempo,
Segure com toda a força
A pressa dos segundos,
Pois a menina que mora em minha alma,
Garimpa os sonhos,
Esquecidos a margem de mim.
Detenha o medo,
Segure com toda força,
A menina que mora em meu coração,
Garimpa em busca de conhecimento…
me encoraja, me questiona
E me arranca da caverna, onde eu me sentia segura…
Segure o máximo que puder.
Mas a menina que me apressa, grita:
“Moça, quanto mais você tenta segurar o tempo, mais ele tende a te deixar para trás!”

Sandra Silva, 42

Comecei com 22 anos, por causa da dificuldade financeira, tendo que sustentar meus filhos pequenos. Aí depois não parei mais. De cara foi um choque. Por mais que eu sabia fazer serviços domésticos, né, você fazer para os outros não é a mesma coisa que fazer para você.

No começo não tinha registro, nada. Trabalhei muito tempo assim, 12 anos. Se eu tivesse trabalhado todo esse tempo com carteira assinada, meu Deus do céu! Igual, acabei saindo de uma casa em dezembro, aí meu seguro desemprego tinha meu Fundo de Garantia. E se eu não tivesse? Eu ia sobreviver do quê?

Consegui voltar a trabalhar mês passado, graças a Deus. Eu estou de mensalista agora. Só que já dormi muito no serviço. Fui sempre bem tratada, mas sempre no meu lugar. Nunca misturei o pessoal com o profissional, entendeu? Por mais que dormisse, que tivesse aquela liberdade, eu sei a liberdade de patrão até onde vai. Nunca confundi. Não é porque falam, “pode ficar à vontade” que vou lá abrir um suco, um refrigerante. Eu nunca fiz isso.

Mas pior que tem umas que não deixam nem comer, tem que levar marmita, sabe? Uma vez a caseira de um lugar onde trabalhei falou, “ó, essa comida de hoje você não pode comer, você tem que comer aquela que tá na geladeira.”. Eu falei que não como comida de quatro dias na minha casa, não seria ali. Quando voltei, eu fui demitida, com certeza ela contou, né (risos).

E ainda tem muitos desses maus tratos, né. Tipo assim, os dizeres, “eu estudei e você quer ganhar mais que eu”, “se você não trabalhar aqui você não trabalha em lugar nenhum”, e a pessoa não pode nem falar nada. E não são só os patrões. As pessoas olham com os olhos meio de desfeita. Já aconteceu de falarem “nossa, você nem parece que é doméstica”. Porque sou doméstica você acha que eu tenho que andar como, com uma sacolinha de mercado, com a unha pela metade? Não é porque trabalho na casa de alguém que vou andar toda esculachada, não é verdade? A gente vai dando risada. Não da situação, mas de saber que existem esses absurdos. E tem muitas que passam e não contam por vergonha, né.

Rita de Souza, 40

A gente morava na roça. Então, desde pequena, levantava cedo, pegando na enxada, capinando. Era muito puxado. Mas o fato de morar na roça ainda era o mais tranquilo. Mas, o meu pai era terrível, qualquer coisinha ele já estava descendo o cacete, batendo. E ele ainda abusava “as” minhas irmãs mais velhas. Sempre quando ele chegava bêbado ele queria porque queria. Aí, meu medo era chegar à idade delas e acontecer comigo também. Eu queria ir embora. Era mais uma forma de fugir de casa do que da roça. Porque na minha cabeça, eu era a próxima.

Foi quando a mulher do fazendeiro me chamou para trabalhar na casa dela, na época eu tinha 12 anos. Meu pai não aprovava, né, ele dizia que filho dele não ia lamber prato de rico. Mas acabei indo, fui morar com eles em Vitória da Conquista, na Bahia. Era para tomar conta da neta deles que nasceu. Mas eu fazia tudo, lavava louça e limpava.

Era quase a mesma coisa de casa, só não trabalhava na roça, mas o trabalho era o mesmo. Não tinha tempo para nada. Nunca cheguei a sentar e comer, só comia depois que eles comessem. O que sobrasse, né. Eu tinha horário para levantar, mas não tinha horário pra dormir. Tinha que estar pronta para qualquer hora que eles precisassem pra ir fazer o que eles quisessem. Muitas vezes, eu estava lá dormindo, cansada e a pessoa batendo na porta, “ou, vai fazer o leite da criança”. Aí, você tem que levantar, ainda com um sorriso.

Por isso eu falo: não tive infância. A minha brincadeira era dar banho numa criança, levar pra escola e ficar com ela o tempo todo, porque se aquela menina caísse, se machucasse, vinha pra cima de você o patrão já reclamando, falando que ia te mandar de volta pra roça.

Aí, quando eu tinha uns 15 anos saí de lá. Acabei indo pra umas casas ainda piores. Em uma, a patroa não permitia que eu saísse porque era “de menor”, então eu ficava presa o tempo todo. E tinha o marido dela também, que sempre ficava tentando abusar, tirava roupa e ficava aquela coisa balançando. Aí, acabei pedindo para sair e vim para São Paulo.

Cheguei aqui sem conhecer nada e logo fui registrada. Para mim, foi uma vitória enorme. Antes, o que eles davam você tinha que aceitar e tchau. Licença-maternidade eu não tive. Quando minha filha nasceu, a patroa falou, “se você não voltar, eu vou ter que chamar outra pessoa pra ocupar seu lugar”. E tive que voltar, né, eu precisava. Quer dizer, a falta de registro prejudicou bastante. Você não tinha direito a nada.

Mas mesmo com o registro, muita gente não respeita o que tá na lei. Com essa nova PEC, por exemplo, as pessoas que converso falam que só mudou a parte do seguro desemprego. Mas referente ao trabalho, elas falam que, infelizmente, não mudou nada.

Na prática é assim, as coisas demoram a mudar. Hoje mesmo ainda tem muito. E tem vários elementos para reforça isso. O uniforme, por exemplo, é para mostrar que você é empregada e não ser confundida com uma pessoa da casa. Quando você abre o portão todo mundo sabe, “essa é a empregada”. É horrível.

Por isso, falo pra minha filha, “estude, que trabalhar pros outros não é bom, casa de família é só o que sobra pra quem não tem a oportunidade de estudar”.