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Por Carolina Campos, Lucas Ximenez e Nathalia Lopes Edição #63

Vidas ciganas

Surgidos antes da era cristã, membros dessa comunidade ainda são vítimas de preconceitos onde quer que vivam

No município de Caieiras, nos arredores da Grande São Paulo, uma senhora de 84 anos, cabelos escuros e brincos dourados espera na porta de seu lar. Seu nome registrado na identidade é Júlia Marques de Lima, porém, ela é mais conhecida como Bibi Esmeralda. De vestido vermelho com bordados dourados, a senhora que ao todo possui três nomes, de acordo com a cultura cigana, recebe suas visitas com um enorme sorriso no rosto. Seguindo a tradição de seu povo, o primeiro nome não pode ser revelado e morre com o pai, com a mãe e com ela. O segundo, é o nome de sociedade, usado para registro. E o último, dado pela madrinha, é o seu nome dentro de sua comunidade. A matriarca declara sofrer preconceito por parte dos não ciganos, mas afirma esse ser apenas um dos problemas enfrentados pela sua comunidade.

Os ciganos chegaram ao Brasil com os primeiros portugueses, quando ainda não existia a ideia de “nação brasileira”. Sendo assim, esse povo fez parte da criação de uma identidade nacional. No entanto, de acordo com a antropóloga Florencia Ferrari, eles se recusam a serem reconhecidos como cidadãos e refutam essa identidade que ajudaram a construir. Para Ferrari, é como se essa sociedade estivesse fora de qualquer nação. Outro ponto interessante é que ser cigano é um estilo de vida e não uma cultura, como afirma a antropóloga. Não existe a cultura cigana. Existe como vivem determinadas pessoas em determinados lugares que se intitulam “ciganos”.

Dentro da comunidade cigana há também a discordância do que é ser cigano. Em uma feira cultural, no dia 24 de março de 2018, na Praça Oscar Silva, localizada na Zona Norte de São Paulo, as ciganas Maura Ney e Bibi Esmeralda entraram em uma discussão sobre o que era e quem era de fato cigano. Uma afirmava que para ser cigano, era necessário saber a língua romani, típico idioma do povo, mas as duas se recusaram a falar esse idioma uma em frente à outra, dando sinais de desconfiança.

Da linha Ron, Bibi Esmeralda é a matriarca de sua família
Nathalia Lopes

Além disso, outro ponto em questão é a visão sobre a lógica do sedentarismo, que não significa necessariamente morar em apenas um local. Um forte exemplo disso é que em um bairro de Jaboticabal, composto somente por ciganos, é possível encontrar diversas casas que são usadas de um modo particular. Cada casa possui um núcleo familiar, mas existe um trânsito permanente de pessoas, em que os moradores estão sempre recebendo visitas e parentes, tendo uma rotatividade enorme de todos.

Como em qualquer sociedade grande, existem processos de segmentações, de divergências internas. Os ciganos podem criar uma dinâmica de vingança, em que certas famílias podem ter convivido com outras em determinada época e gerado algum tipo de conflito. De acordo com a antropóloga, esse tipo de situação é comum e alimenta a rivalidade entre grupos diversos.

Olhando sob este ângulo, também é possível citar o imaginário cigano, ou seja, pessoas que não são ciganas, mas praticam rituais, vestem-se, dançam e fazem festas ciganas. O cigano foi considerado pelo pensamento ocidental como uma espécie de “outro”, tanto pelo lado negativo, sendo visto como ladrão e bruxo, quanto pelo lado positivo, o da utopia, com fascínio e com a ideia de liberdade. Para Ferrari, os ciganos se apropriaram desse aspecto. Eles têm consciência de que são vistos dessa maneira e articulam isso para seu próprio bem.

Origem nômade

Acredita-se que o povo cigano surgiu na região correspondente hoje à Índia, antes mesmo de Cristo, mas sua origem de fato ainda é um enigma. Existe uma grande diversidade de costumes e tradições e, por isso, usar o termo “cigano” é algo genérico, já que existem algumas subdivisões. No Brasil as mais numerosas e conhecidas são os Ron e os Calom.

Os Calom chegaram ao Brasil na segunda metade do século XVI, durante as navegações que saíam da Península Ibérica. Diferem-se dos Ron pelas características físicas, dialetos e costumes. São mais acessíveis, mais pobres e necessitam do estereótipo da tradição para sobreviver. As mulheres usam a leitura de mão como fonte de renda, já que a maioria delas não têm escolaridade formal e tampouco sabem ler e escrever. Os homens têm o costume de negociar diversos objetos por onde passam.

Do mesmo modo, independentemente do sobrenome que carreguem, para as comunidades ciganas, a família é sagrada. É uma entidade extensa que compreende os parentes com os quais sempre são mantidas relações de convivência, comunhão e interesses de negócios. Possuem frequente contato, mesmo se os membros de uma família viverem em locais diferentes.

Também é uma característica de organização que as famílias sejam em sua maioria matriarcais, ou seja, o poder de decisão gira em torno da mulher mais velha. Ela é responsável também por aconselhamentos e possui a última palavra. Mesmo assim, as meninas não possuem liberdade e autonomia, os casamentos são arranjados e, na maioria dos casos, não é permitido namoro.

Um forte exemplo de uma típica família dos Calon é a de Maura Ney, que trabalha com leitura de mão. Ela e seus parentes utilizam dos shows e feiras culturais para seu sustento. Ney afirma que quer proteger suas filhas das influências do exterior, não autorizando as menores a saírem desacompanhadas ou namorarem sem supervisão. Além disso, afirma que considera importante educar as crianças na escola, mas sempre que pode passa nos intervalos e mantém um acompanhamento próximo.

Preconceito

Há muito tempo, os ciganos sofrem com perseguições. Como nos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando eram assassinados nos campos de concentração nazistas. Esse tipo de ataque, apesar de ter se tornado menos violento e mais disperso, existe até hoje. Conversando com ciganos e simpatizantes do estilo de vida, é possível ouvir uma série de histórias marcadas por violência à comunidade. E o caso de Esmeralda, que estava perdida numa estação de metrô, pedindo informação a quem passava, e mesmo com as roupas coloridas, joias e acessórios chamativos era ignorada por todos. “Eles falam que a gente é porco, rouba criança e come defunto. Já pensou comer defunto? Deus me livre”, exemplifica Esmeralda com alguns dizeres preconceituosos que já ouviu na vida.

Da linhagem Ron, Lu Cigana, como é chamada, estava organizando um evento no qual as portas de um acampamento cigano tradicional em Guarulhos seriam abertas. Por mais que não more nesse acampamento, ela convive com vários ciganos nômades de São Paulo e região, devido ao serviço político e social que exerce na luta pela causa da comunidade. Lu relata que os preconceitos acontecem das mais diversas formas, como quando os vizinhos ateiam fogo e jogam lixo no acampamento. Mesmo assim, ela acredita ser inútil prestar queixa às autoridades, tendo medo que os moradores revidem de alguma forma, piorando a situação do ambiente.

Pertencente aos Calom, Maura Ney, dos Calom, afirma que teve seus avós mortos por um incêndio criminoso, causado pela Polícia Militar. O pai foi um dos poucos sobreviventes. “O racismo contra nós é silencioso. Você não vê a mídia falar que invadiram o nosso acampamento”, afirma.

Entretanto, existem ciganos que possuem uma visão diferenciada do assunto, como é o caso de Beto Cigano. “Não sofri nenhum preconceito porque eu soube me comportar em relação ao momento. Sempre percebi quando eu não era bem visto. e você percebe esse momento, você tem a paciência de aguardar que a pessoa se interesse, vai saber de onde você é e porque você está ali”, afirma.

Realidade brasileira

No início de abril de 2018, no bairro de Bonsucesso, em Guarulhos, a cigana Lu organizou um evento para comemorar o dia internacional dos ciganos, com contribuição de verba do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Estado de São Paulo. O local contava com músicos e dançarinos convidados. Eles se apresentavam na tenda central do acampamento. Também haviam barracas de comerciantes que vendiam produtos tradicionais como roupas, acessórios e até mesmo o serviço de leitura de sorte.

O evento reuniu simpatizantes do estilo de vida, mas os próprios ciganos residentes estavam à margem do espetáculo. Dentro de suas cabanas, os homens não se misturavam e as mulheres, preocupadas em tomar conta das crianças, com roupas menos chamativas que as dos não ciganos, nem sequer participavam do evento. Em chão de terra e um amontoado de lonas, na lateral do acampamento, atrás das vendinhas presentes no evento, encontrava-se a barraca da matriarca. Sentada ao centro de seu lar e com uma dúzia de presentes aos pés, Preta, de 55 anos, fumava um cigarro enquanto recebia os convidados e, de um em um, dava-lhes boas-vindas. Responsável pelas decisões, a senhora que observava tudo de dentro da tenda, pouco participava diretamente, mas relatou que tudo aquilo a ajudava, tanto pelas doações quanto pela visibilidade.

Por ser um terreno com declive, o local no bairro do Bonsucesso é propício a alagamentos. As chuvas são um grande problema para os moradores, já que não existem muitas possibilidades de escoamento da água. Além disso, a falta de saneamento básico dificulta ainda mais a situação. Com a fiação instalada de forma irregular, a luz elétrica chega, mas pelo fato da propriedade ser privada, os ocupantes relataram que não há muito que a Prefeitura possa fazer por eles.

São ao todo sete moradias, sendo algumas bem equipadas com aparelhos de televisão e até fogão e geladeira e outras bem mais simples. A organização e o cuidado são notáveis, e entre galinhas e gatos rondando o acampamento, o brilho reluzente das panelas chamam a atenção de quem examina o que há dentro de cada uma das tendas.

Em meio a lonas laranjas, cinzas e azuis, um grande ponto rosa bebê se destaca: a barraca decorada com tecidos de cetim, bordados com corações, pertence ao jovem Tiago, de 16 anos, e sua mulher. Nascido em Santa Catarina, Tiago alega já ter viajado o mundo inteiro. Suas roupas se diferenciavam das vestimentas que os convidados do evento usavam. Enquanto os homens vindos de fora trajavam camisas coloridas e bem extravagantes, ele vestia o que mais gosta: calça jeans, botas, camisa, faltando apenas o chapéu de rodeio. Quando perguntado sobre o estilo musical, relatou que preferia mesmo um “modão” sertanejo.

À margem do espetáculo, Fabrícia, uma cigana residente do acampamento, disse que se sentia indiferente com o que estava acontecendo ali, quando questionada sobre os motivos dela não participar das danças, respondeu. “Isso aqui não é nós (sic). Ninguém quer ver isso aqui, querem ver o bonito”.

Mas não são todos os membros dessa comunidade que levam a vida como Fabrícia. O estilo de vida cigano pode variar, indo desde os que são adeptos ao nomadismo até aqueles que possuem uma melhor condição financeira e preferem não frequentar as conhecidas feiras. Há muita discordância sobre o que é ser cigano de fato, até mesmo entre os que se identificam com esse estilo de vida. Não existe um consenso do que é ser cigano. Para cada indivíduo o que vale é a autoafirmação e o sentimento que carrega pelo seu povo.