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Por Fernanda Talarico Edição #63

Os voyeurs da revolução

Em “Os Sonhadores”, Bernardo Bertolucci embaralha os limites entre o público e o privado no Maio de 1968

No livro “Era dos Extremos”, de 1994, o historiador Eric Hobsbawm comenta que um dos slogans das manifestações de Maio de 1968 era “quando penso em revolução, quero fazer amor”. Logo após, pontua que, à época, “não se podia claramente separar ‘fazer amor’ e ‘fazer revolução’”.

“Os Sonhadores”, filme do italiano Bernardo Bertolucci, de 2003, trata justamente de ambas as questões, revolução e sexo, de maneira revisionista. Mesmo descendo da Torre Eiffel (como faz nos créditos iniciais) e adentrando no calor daqueles momentos, não se dispõe a deixar de ver tudo com distanciamento.

Matthew (Michael Pitt) é um norte-americano que, durante o ano de 1968, está em Paris para aperfeiçoar seu francês e também alimentar uma de suas maiores paixões: o cinema. Ele convive com jovens que, como ele, recém-saíram da puberdade, frequentam a Cinemateca de Paris, e, sentados nas primeiras fileiras da sala escura, ficam extasiados perante o telão. Matthew, ao menos, é consciente da projeção, dos limites entre ver e viver. Nesse ambiente, o jovem conhece e se encanta pelos irmãos gêmeos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green), estereótipos de franceses blasés, aventureiros e libertários.

A cidade começa a ferver com os protestos gerados pela demissão do fundador da Cinemateca, Henri Langlois, e o único lazer do trio acaba. Nessa Paris povoada de manifestações estudantis, os jovens aproveitam uma viagem dos pais dos gêmeos e se fecham no apartamento deles. Na pura dependência dos pais e dos cheques que deixaram na casa, na intimidade, a amizade dos três se converte em uma relação mais profunda – e, para Matthew, de forma chocante. Afinal, Theo e Isabelle mantêm uma relação que beira o incesto: não têm pudores em relação à nudez, estão sempre juntos, um masturba-se em frente ao outro. Nessa situação, Matthew surge como um terceiro elemento necessário para os dois na construção de um “novo Éden”. Filhos de um mesmo pai, gêmeos siameses, Theo e Isabelle não são mais suficientes para revolucionar entre quatro paredes.

Os gêmeos Isabelle e Theo trazem Matthew para se juntar a eles em uma relação a três, sem qualquer pudor
Recorded Picture Company / Divulgação

Na conjuntura de 1968, o “trisal” já era polêmico e, mesmo hoje, depois de meio século da “revolução”, a situação ainda é desconfortante. Na emblemática cena na cozinha, Theo frita ovos enquanto Matthew e Isabelle transam. Descobre-se, então, que a menina era virgem e, no gesto mais passional do filme, ela lambuza sua mão e passa o sangue em sua cara e na do seu amante. Enquanto isso, lá fora, a tentativa de revolução é observada por Theo com certa indiferença, apesar de ele se apresentar publicamente como um ativista – contrário à autoridade familiar, anti-capitalista, leitor do Livro Vermelho, proprietário de vários bustos de Mao Tsé-Tung. Para essas revoluções que ocorrem lado a lado, o personagem de Louis Garrel só pode, efetivamente, contribuir com seu olhar.

Matthew, espécie de alter ego de Bertolucci no filme, começa a enxergar certa puerilidade naqueles irmãos (dependentes dos pais, imaturos, cinéfilos, fãs da cultura pop) e os desafia a crescerem, a pararem com brincadeiras. Por fim, seu discurso pacifista é o que acaba levando-o para longe deles e de seus paradoxos.

Isabelle surge como uma figura dominadora, num primeiro momento, mas surpreende ao se revelar virgem e sempre submissa às vontades do irmão. Sua infantilidade é mostrada na decoração de seu quarto: ela está apenas começando a crescer. Nas poucas manifestações que participam, ela grita “fascistas!”, mas suas provocações parecem vazias. Seu conservadorismo vai de encontro aos seus atos revolucionários, pois, enquanto de um lado vive e desafia as liberdades da carne e da autoridade familiar, diz que se mataria caso os pais descobrissem seus atos.

Eis que, de volta ao lar, a mãe e o pai encontram um apartamento totalmente bagunçado e os três dormindo, nus, em uma tenda na sala. Tal situação, porém, só é revertida em conformismo. Deixam mais dinheiro debaixo de uma estátua e vão embora. Isabelle, sozinha, percebe o vestígio dos pais e tenta transformar sua culpa em morte. Com uma mangueira, desvia o gás da cozinha para o leito do trio, pronta para interromper aquela revolução. Maio de 1968, no entanto, desvia o gesto fatal. Uma pedra atirada da rua quebra o vidro da sala e os três acordam para aquele outro mundo.

O caos ainda está instaurado nas ruas, atingindo o pico das ações mais combativas do movimento. Nessa cena final no mundo exterior, já não mais no paraíso artificial do apartamento, os gêmeos partem, sem pensar duas vezes, para a luta. Matthew, contrário àquilo, vira as costas para eles e desaparece na multidão. Em um ato impulsivo e fatal, os irmãos preferem o coquetel molotov na barreira de carros mais arriscada à primeira fileira do cinema.

No plano final, com uma horda de policiais correndo em direção ao espectador, Bertolucci nos lembra da tela de cinema. Como aqueles fantasmas que sua obra tenta resgatar, na poltrona, não passamos de voyeurs protegidos pela telona.