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Por Camilla Millan e Seham Furlan Edição #63

“De qual humanidade você é?”

Nome conhecido entre as lideranças indígenas, Ailton Krenak fala sobre a vida e políticas relacionadas aos povos nativos brasileiros

Ailton Krenak é uma das vozes que ecoam em favor da resistência indígena no Brasil. Em 1987, realizou um discurso impactante na Assembleia Nacional Constituinte, no qual pintou seu rosto com jenipapo em protesto à opressão sofrida pelas comunidades indígenas. Sua liderança resultou nos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, que garantem os direitos denominados originários, concedendo aos indígenas autonomia sobre suas terras tradicionais. Krenak é um importante protagonista em diversas iniciativas de lutas ameríndias, além de ser um dos fundadores da União das Nações Indígenas e da Aliança dos Povos da Floresta, assim como da ONG Programa de Índio. Na literatura, é autor de “O lugar onde a terra descansa” (2000), além de ter uma coletânea de entrevistas publicada no volume 50 da Coleção Encontros da Azougue Editorial.

Aos 64 anos, Krenak persiste em sua luta pelos direitos indígenas, participando de debates e fóruns, como a Conferência Mundial da Água, realizada no dia 21 de março de 2018, em Brasília. Confira abaixo a entrevista de Krenak à ESQUINAS sobre as questões indígenas e do Brasil contemporâneo.

ESQUINAS Quais preocupações você tinha na época do seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte e quais você tem atualmente?

Há trinta anos, a realidade do Brasil era muito diferente do que vivemos hoje. Tínhamos uma campanha pelas Diretas Já, saindo de uma ditadura de vinte anos e as pessoas tinham muita disposição de reivindicar, de ir para a rua. Existia uma certa semelhança de expectativa entre pessoas do Norte, do Sul. Eu compartilhava dessa expectativa, de que virando o século XX, nós iríamos estar caminhando para um tipo de sociedade mais igualitária. Isso me animou a participar de uma campanha coletiva que resultou na minha intervenção no Plenário, de uma das Comissões da Assembleia Nacional Constituinte e propor o Capítulo dos Índios, que temos na Constituição hoje. Com relação aos direitos indígenas que nós projetamos, as garantias que conseguimos listar na Constituição estão sendo mantidas a duras penas, com uma constante violação desses direitos fundamentais. A diferença entre as minhas expectativas naquele tempo e agora estão descritas nesse quadro.

Em 1987, Krenak chocou a Constituinte pintando seu rosto com jenipapo
Reprodução

ESQUINAS Quais valores, em sua opinião, regem a mentalidade atual? Você acredita que elas podem ser alteradas?

Não só no Brasil, mas globalmente, os valores que estão no topo são o egoísmo, individualismo e o “salve-se quem puder”. Em qualquer lugar do mundo, a radicalização dos pensamentos extremos está na moda. Você tem um coreano apertando o gatilho de um lado e Trump do outro. Mesmo quando fazem uma aproximação, essas são críticas oportunistas, cheias de desconfiança. Nós chegamos a um ponto em que é impossível a condição de escolher alguém para receber o Nobel da Paz, porque não tem nenhuma liderança trabalhando pela paz no mundo. Pode parecer uma visão muito ácida e sem esperança para alguém que está há quarenta anos em movimentos sociais, mas me parece que a possibilidade de mudança está nas camadas mais profundas do inconsciente. Mas eu acredito na mudança das mentalidades, porque se elas podem ser alteradas para pior, deve haver a possibilidade de serem alteradas para o que julgamos ser melhor. Quem sabe essas mudanças que estamos criticando sejam uma trajetória, um caminho entre o estágio, digamos assim, mais simples de entendimento da sociedade que estamos constituindo, que é global. Não temos mais o peso relativo das comunidades locais, regionais, porque o processo hoje é simultâneo: ao mesmo tempo que temos um evento local, há um correspondente global desse, na economia e no pensamento.

ESQUINAS Em seu discurso ao receber o título de doutor honoris causa na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), você fala sobre a engenharia social, uma vez ressaltada pelo professor Darcy Ribeiro. Qual é a dimensão desse conceito para você e como ele te ajudou a entender o seu lugar no mundo?

A aplicação da engenharia social que mencionei é a possibilidade de continuarmos atuando criticamente, mesmo vivendo em um ambiente totalmente diluído e alienado daquilo que seria um bem-comum. Eu posso atuar de uma maneira consciente no meio disso e ajudar a melhorar o circuito mais imediato de onde eu vivo, seja minha aldeia, minha casa, minha família. Isso é uma costura entre o sujeito e o ambiente em que ele vive. Quando disse que é uma engenharia social que o povo indígena mantém, característica dessas pequenas sociedades, eu estava exatamente falando dessa potência, dessa capacidade que é estimulada e apoiada, para que as pessoas não se percebam como indivíduos, no sentido sozinho, mas como sujeitos que integram outros coletivos, a ideia de sujeito-coletivo.

ESQUINAS Quem foi um grande mestre na sua vida, cujos ensinamentos você busca compartilhar por meio do seu engajamento?

Eu poderia dizer que foi meu pai ou meu avô, mas seria uma imagem muito resumida. Eu aprendi com todo mundo o tempo inteiro, a minha vida toda. Hoje já sou avô e estou aprendendo com a minha netinha, que tem quarenta dias, com os netos mais velhos, estou aprendendo conversando com você também. Eu tenho uma ideia de que nós podemos, o tempo inteiro, experimentar a realidade de viver numa comunidade de aprendizagem. Uma comunidade de aprendizagem é aquilo que ficou reduzido como escola, um lugar em que a experiência de formação ficou resumida. Para quem não teve a experiência dessa escolarização, aprender é participar de uma comunidade de aprendizagem, que é o mundo, é aberta, tendo todo tipo de influência e de informação.

ESQUINAS No Brasil, há grande dificuldade de nos apropriarmos de nosso passado, tanto historicamente quanto em relação às nossas origens. Percebe-se na cultura indígena, a busca pela preservação da ancestralidade. Como isso pode ser proveitoso em outras realidades?

Eu acredito que esse apego ao que seria uma memória, uma referência à ancestralidade não é algo que a gente possa transmitir uns aos outros, acredito que é o próprio exercício da memória. Ele é, ao mesmo tempo, orgânico, físico, uma herança cultural e o desenvolvimento dessa semente, desse contínuo. Tem um pequeno verso que diz “cantando, dançando, passando sobre o fogo, seguimos o passo dos nossos ancestrais no contínuo da tradição”. A ideia desse contínuo é a de algo sem começo e sem fim. É um mantra que algumas pessoas em alguns lugares do mundo – ciganos, índios, chineses, africanos – guardam e transmitem a suas linhagens. Eu tenho ainda dificuldade de imaginar como isso pode ser passado para outras situações, porque seria uma transmissão intelectual de herança cultural. Me parece que a própria ideia de ancestralidade é muito abstrata também. Quem são nossos ancestrais? O meu ancestral e o seu são os mesmos?

Ainda na ativa, Ailton Krenak continua participando de congressos
Henry A.Y.N

ESQUINAS Creio que de uma certa forma, sim.

Então nossa memória é remota a um tempo muito anterior a nossa herança imediata. Não é só essa coisa “de qual família você é? De qual tribo você é?”, mas “de qual humanidade você é?”. Se a gente pensar nesses termos, sim, a gente pode descobrir maneiras de compartilhar essa memória e estimular esse vínculo com valores que são ancestrais.

ESQUINAS Você acredita que faz sentido a existência de um órgão federal como a Funai nos dias de hoje?

Na Constituição de 1988 foi reconhecido pelo Estado brasileiro a capacidade de auto-organização das sociedades indígenas. Se você ler o artigo 231, é declarado que os índios são autônomos para viver nos seus territórios, demarcados e protegidos pelo Estado. Se a gente levar a termo isso, não tínhamos que ter uma agência do governo para tutelar os índios. A tutela foi superada pela Constituição de 1988. A Funai existe como uma agência do Estado brasileiro que deveria simplesmente reconhecer, promover a proteção externa, física dos territórios indígenas, documentar esses processos e não se meter na vida dos índios. Historicamente, ela é um obstáculo à autonomia dos índios. Ela se mantém apoiada na Lei 6.001, que é o Estatuto do Índio, do tempo da ditadura, feito em 1972 e promulgada pela Junta Militar. Se a gente fez uma campanha contra a ditadura, pelos direitos humanos e fizemos uma Constituição, é contraditório continuar mantendo uma coisa chamada “Fundação Nacional do Índio”. Ela é uma excrescência da ditadura. A Funai tinha que ser extinta.

ESQUINAS E nada deveria ser colocada em seu lugar por parte do poder público federal?

O Ministério das Relações Exteriores tinha que criar um departamento altamente especializado, com autoridades, diplomatas e embaixadores que falassem pelo menos vinte línguas indígenas, para tratar de questões externas, que são os povos indígenas. Os Yanomami falam português? Reconhecem esses símbolos: cartório, delegacia, enfermaria? Por que devem ser tratados como se falassem português, estivessem no Código Civil, como se tivesse toda cognição de um colono brasileiro? Eles tinham que se relacionar com alguém que fale Yanomami, que conheça essa cultura e que representasse o Estado brasileiro com os Yanomami e tinha que ser no Itamaraty, não na Funai.

ESQUINAS Como os saberes indígenas considerados “não-acadêmicos” podem ser beneficamente incorporados ao sistema educacional?

O trânsito entre esses mundos diferentes é pequeno, mas alguma coisa chega na literatura e nos livros de História, mas chegam por contrabando. Não é dado o crédito, a bibliografia, ele é apropriado. Tudo que é interessante e útil é utilizado, mas não diz de onde foi pego, tanto o acervo da biodiversidade, como da cultura é subliminarmente capturado, adaptado e pirateado. Mas isso acontece. Não existe um abismo entre o que nós vivemos no cotidiano, comemos, falamos e a cultura dos povos indígenas, os saberes. E são apropriados o tempo inteiro, na culinária, na linguagem, na geografia, na topografia. Se você olhar para um lado vai ver um lugar que chama Anhangabaú, mais para cima, Jaraguá. São nomes em língua Tupi. Tudo isso está no cotidiano, mas está como se fosse um fantasma. Aquilo que eu chamei de biodiversidade vem da Mata Atlântica, das florestas, o que está sendo usado na base de muitos dos nossos cosméticos. O conhecimento e tecnologia dos índios é apropriado pelo mercado, pelos brancos, sem crédito. Isso é biopirataria. Então, as universidades, os livros e bibliotecas estão cheios de saberes, apropriando-se de conhecimentos que não são acadêmicos. Depois que alguém fizer uma tese, um doutorado, isso vira produto deles também.