A história da Ocupação Mauá, no centro de São Paulo, é parte da luta por moradia e disputas com os Poderes Executivo e Judiciário
“Se tirarem a gente de lá, é aqui que a gente vem morar com uma vista belíssima para o Marco Zero da cidade. Aqui será a nossa moradia, um ótimo empreendimento”, anuncia o alto-falante na porta do Fórum João Mendes às 43 barracas dispostas na calçada oposta, montadas pela Frente de Luta por Moradia. A reintegração de posse da Ocupação Mauá estava marcada para pouco menos de um mês depois, dia 22 de outubro de 2017. Para protestar contra a ordem de despejo, os moradores do prédio, junto a outros movimentos de luta por moradia em São Paulo, reuniram-se em frente ao tribunal em 02 de outubro de 2017, data que marca mundialmente o dia do sem-teto. Como resultado, a ação de despejo foi adiada em um mês. “Trinta dias passam assim”, observa Nelson da Cruz, estalando os dedos. Ele é, aos 56 anos, uma das lideranças do movimento na luta por moradia na capital paulista.
Para a maior parte dos moradores, ir à Ocupação Mauá não foi uma questão de escolha, mas sim de necessidade, e poucos têm uma alternativa caso sejam despejados. É o caso de Maria Carolina, ocupante de 35 anos, que divide o apartamento de menos de vinte metros quadrados com o marido e duas filhas, uma de dez e outra de quatro anos de idade. “Eu acho uma injustiça o que estão fazendo. A gente não tem para onde ir, eu estou desempregada e meu marido é camelô. Se eu não tivesse entrado lá, minhas filhas teriam passado fome”, diz.
Segundo dados do Plano Municipal de Habitação da Prefeitura de São Paulo, em 2000, havia cerca de outras 90 mil pessoas em situação similar à de Maria Carolina, vivendo em conjuntos habitacionais precários. O problema da moradia em São Paulo, contudo, é muito maior. Já em 2010, o número de pessoas em áreas precárias atingia cerca de quatro milhões de pessoas, quase um terço da população da capital paulista.
A cidade ocupa o segundo lugar no ranking de metros quadrados mais caros do Brasil. De acordo com o Departamento de Controle da Função Social da Propriedade da Prefeitura, a capital paulista possui mais de dois milhões de metros quadrados distribuídos em imóveis “subutilizados”, “não utilizados” ou “não edificados”.
“Quem não luta está morto”
A Ocupação Mauá foi batizada com o nome da rua em que se localiza. Lá, no número 340, a frase “Quem não luta está morto” estampa, junto das cores vermelho e branco, os poucos metros de um muro que delimita a porta de entrada. De frente para a Estação da Luz, comprimida por uma lanchonete à direita e por uma loja de roupas à esquerda, a Mauá se integra a um conjunto comercial composto por dezenas de pequenos estabelecimentos comerciais no quarteirão.
No século XX, a Estação da Luz foi porta de entrada para milhares de migrantes que chegavam a São Paulo sonhando com uma vida melhor. Por causa disso, no seu entorno se construíram diversos quartos para aluguel. Hoje, muitos deles foram abandonados ou servem de hospedagem barata para a prostituição e o consumo de crack. Esse não é, no entanto, nem de longe o caso da Ocupação Mauá. Originalmente também um hotel, o prédio ainda guarda alguns dos traços originais como os quartos pequenos e grandes áreas comuns, mas, principalmente, serve de abrigo para centenas de famílias.
A portaria gradeada já não é mais a mesma. Assim como muitos prédios modernos, ao adentrar a antiga hospedaria, os visitantes devem se identificar com os documentos em mãos e os horários de entrada e saída são avisados. Passando pelo portão de ferro, o corredor leva à uma escadaria em caracol, que dá acesso aos apartamentos das mais de duzentas famílias, e ao vão central da construção.
Ao final da assembleia do dia 27 de setembro de 2017, uma das coordenadoras do levante, Ivaneti Araújo, declarou: “Se a comunidade Mauá cair, não fica nenhuma ocupação no Centro da cidade. Vai ser um efeito dominó”. Esse cenário pode muito bem se tornar realidade. A Mauá é uma das mais antigas e consolidadas ocupações da capital paulista, com mais de dez anos contínuos de existência.
Recentemente, a área da plantação nos fundos da construção foi destinada à construção de casas para habitação, onde hoje moram 14 famílias que foram despejadas de outra ocupação. Analice Silva dos Santos, de 61 anos, vive em um desses quartos. “Morei nas casinhas do Brás durante um ano. Lá, fiquei toda marcada, olha”, diz, mostrando as marcas de mordida de insetos em seu colo. “Os percevejos dormiam comigo. Aqui, eu limpo minha casinha todo dia. Levanto logo cedo e vou cuidar”. Os moradores participam dos mutirões de limpeza periodicamente, além de estabelecerem regras para o uso dos cômodos comuns e faxina dos andares.
“Chapéu alheio”
A data, segundo boletim de ocorrência, em que os atuais moradores passaram a viver no prédio da Rua Mauá é 26 de março de 2007. Foi em 16 de março de 2012, dez dias antes da celebração do quinto ano consecutivo de ocupação, que os herdeiros do local iniciaram a ação de reintegração de posse do prédio. A data de celebração em questão era uma marca importante para os ocupantes: nesse dia poderia ser dado início ao processo de usucapião, modo de aquisição de bens ou direitos pela posse prolongada.
A advogada da Associação Comunitária na Luta por Justiça aponta, em carta enviada à Corregedoria Nacional de Justiça, assinada por Rosângela Rivelli, a rapidez do sistema judiciário em julgar o caso em 54 dias, muito abaixo da média nacional de quatro anos e quatro meses, de acordo com relatório “Justiça em Números” de 2016, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça. Ainda de acordo com a advogada, os autores do processo contra os moradores não realizaram o pagamento das custas processuais, o que poderia acarretar pena de extinção do processo. O pagamento não foi feito, o processo não foi extinto e, no dia 07 de maio de 2012, o juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara Cível Central da Capital, julgou procedente o pedido de reintegração de posse, dando consolidada a posse do imóvel em favor dos herdeiros.
Mesmo que a Constituição Brasileira, no Artigo 3°, inciso III, diga que seja objetivo fundamental da República erradicar a pobreza e a marginalização, além de reduzir as desigualdades sociais e regionais, para o juiz na sentença proferida, “no Estado democrático de direito, onde assegurada a propriedade privada, não está o Judiciário autorizado a intervir na ordem econômico-social vigente”, pois, ainda segundo ele, “ao Executivo cabe assegurar o direito de moradia, obviamente não às custas dos particulares (como diz o sábio ditado popular ‘não se pode fazer caridade com o chapéu alheio’)”.
Os moradores da Ocupação Mauá deram entrada com o pedido de recurso da decisão. Ao mesmo tempo, a Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab/SP) iniciou um processo de desapropriação do imóvel, contra os proprietários, para a finalidade de construir habitações populares. Enquanto o recurso dos moradores foi negado, o processo movido pela Cohab continuava. Isso porque, em 2013, o então prefeito Fernando Haddad assinou o decreto de nº 54.113 que autoriza a Cohab a dar seguimento ao projeto reformulado da Nova Luz, criado e iniciado em 2009 na gestão de Gilberto Kassab.
Projeto ambicioso
O Projeto Nova Luz foi idealizado, originalmente, como um projeto urbanístico feito pela Prefeitura de São Paulo a fim de ampliar os espaços de moradia e reformar os aparelhos urbanos de convívio social na região, além de restaurar a arquitetura, que é única na capital paulista. Inicialmente, a ação previa para 2025 a criação de uma zona habitacional integrada ao comércio da região, ampliando o uso que os cidadãos fazem da área, além da preservação e recuperação do patrimônio histórico. Quarenta e cinco quadras ao longo das ruas Vitória e Santa Efigênia, respectivamente, seriam reorganizadas. Ações como a redução do fluxo de trânsito, a demarcação de ciclovias, a eliminação do estacionamento ao meio-fio e plantio de árvores.
Pela proximidade com a Estação da Luz, o quarteirão em que hoje se localiza o prédio da ocupação Mauá seria completamente demolido para dar lugar a um centro de entretenimento, aberto 24 horas por dia, com cafés, restaurantes e cinemas. “Do ponto de vista urbanístico, é bom o projeto. Ele foi bem-feito, mas tinha problemas. Era muito grande e faltou diálogo com a comunidade. Tinha que ter montado um conselho com os moradores e vendedores da região desde o começo, o que só foi feito depois”, explica Elisabete França, diretora de Planejamento e Projetos da Companhia de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Estado de São Paulo (CDHU/SP). O projeto foi, em janeiro de 2013, engavetado e reformulado pela gestão Haddad que, pelos altos custos de investimento, não via uma aplicação financeira viável da forma como ele foi concebido.
Até a semana anterior ao dia da reintegração de posse, o processo estava certo e seria conduzido pela Polícia Militar, despejando as 237 famílias do prédio. Porém, no dia 16 de novembro de 2017, a Prefeitura de São Paulo entrou em acordo com os proprietários do imóvel. Pelo edifício, será paga a quantia de vinte milhões de reais em virtude da desapropriação.
“É importante dizer que a pior luta é aquela que não se faz, e quem não luta está morto. Viva a Mauá.”, afirmou a líder Ivaneti Araújo em um vídeo gravado para a página da ocupação no Facebook, no qual declarava a vitória dessa luta judicial. Embora esse seja apenas um caso, para os moradores da Mauá, o acordo será o recomeço de uma história com casa própria e possibilidade de construir uma moradia digna.