Acessar a capital paulista pode ser um desafio para pessoas com deficiência, mas iniciativas mudam, aos poucos, essa realidade
A luta por acessibilidade está em todos os cantos da cidade de São Paulo, que acaba não sendo apropriada por todos devido a obstáculos físicos e políticos que ainda excluem alguns de sair às ruas com segurança e de ter acesso a direitos básicos. As conquistas caminham a passos lentos, e retrocessos e avanços são observados de perto pelos cidadãos com deficiência da capital paulista. A redução de atrações acessíveis na edição de 2017 da Virada Cultural em relação ao ano anterior é um símbolo do desânimo com a órgãos governamentais, que demoram a implementar políticas públicas permanentes nesse setor.
O Censo da Educação Superior 2016 mostra que a evasão é de 86% entre os estudantes surdos no Brasil, enfatizando que o problema é de todas as instâncias do governo e, na maior metrópole do país, toma proporções gigantescas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no Brasil cerca de 6,5 milhões de brasileiros com deficiência visual, sendo que 38,4% estão na região Sudeste, por exemplo.
Mas a mudança vem aos poucos e o ensinamento pode vir de diversas formas, inclusive pelo toque. Como ocorre nas aulas de balé para pessoas com deficiência visual da Associação Fernanda Bianchini – Cia Ballet de Cegos. O aprendizado também contempla outras áreas da vida como o esporte, no qual pessoas têm de desafiar seus limites para poder praticá-lo. E o desafio trouxe resultados. Um deles foi o fato de ter sido um brasiliero o segundo cadeirante no mundo a dar um salto mortal, além de o Brasil ter alcançado a oitava posição nas Paralimpíadas de 2016.
Poder praticar um esporte e ainda competir em torneios sendo um atleta com deficiência é possível graças ao desenvolvimento de tecnologias adaptadas à acessibilidade. Lúcio Oliveto Alves, diretor comercial da empresa Kit Livre, projetou uma ferramenta que se acopla às cadeiras de rodas, deixando-as capazes de manobras radicais. Outro desenvolvimento tecnológico aliado dessa população é o teclado acessível do cientista da computação Gleison de Faria, que torna fácil a digitação para quem tem os movimentos das mãos limitado.
O acesso à cultura também é um direito, mas ouvir as obras de arte é uma novidade. A audiodescrição auxilia as pessoas cegas a visitar museus de São Paulo de forma integral graças às narrativas descritivas adicionais, e pessoas cegas podem, assim, participar das interações com as produções artísticas e discussões nesses ambientes, que antes as excluia ou não as contemplava.
O som e o tato que fazem enxergar também devem estar do lado de fora. Percebe-se que as ruas não foram planejadas levando em conta as necessidades de pessoas com deficiência visual ou motora. Com 53 mil habitantes cegos, a capital paulistatem apenas oito semáforos sonoros, sendo que a metade deles está na região do Aeroporto de Congonhas, na Zona Sul. Entre os que estão nas ruas, nenhum equipamento funciona na totalidade da travessia.
Somente com uma cidade acessível, pessoas com deficiência podem se tornar agentes protagonistas de São Paulo. Jefferson Figueira faz parte do grupo de Pintores com as Bocas e Pés, produz quadros autorais e os vende em exposições. A iniciativa também estimula outras 900 pessoas com deficiência motora a serem os artistas que são, tornando possíveis a autonomia financeira e o desenvolvimento artístico desses cidadãos.
A seguir, algumas das principais questões e problemáticas da acessibilidade na cidade de São Paulo e em todo o país. As histórias dos projetos e iniciativas que mudam, aos poucos, a realidade de pessoas com diversos tipos de deficiência nas ruas, museus, empresas, competições e salas de aula.
A urgência em ouvir os surdos
O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2017 impulsionou uma reflexão ao abordar os desafios da formação educacional dos surdos. A discussão envolve a necessidade da educação bilíngue para pessoas com deficiência auditiva, em Português e na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras), e pauta o alcance ao ensino superior e a permanência nele. Segundo o Censo da Educação Superior 2016, apenas 14% dos estudantes surdos concluíram seu curso.
A Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), com a crise econômica, precisou cortar gastos, incluindo o salário dos intérpretes. De maio a setembro de 2017, os discentes surdos tiveram aulas sem os profissionais, o que para Fernanda Veloso, aluna de Odontologia, foi desastroso, pois ela não conseguiu passar para o terceiro semestre. “Pelo jeito, o professor queria que eu me adaptasse. Mas não consigo acompanhar a explicação”, desabafou.
Sobre o quesito de estrutura, a Universidade Metodista de São Paulo oferece uma série de adaptações. No caso das pessoas com deficiência auditiva, é fornecido um intérprete em todas as aulas, assim como o auxílio dele fora do período, sem contar uma orientação prévia dada aos professores. A dificuldade encontrada pela aluna de Psicologia Fernanda Galvão é a interação social. Quando o número de pessoas em uma conversa aumenta, a leitura labial é dificultada e os assuntos se limitam à academia.
Aprendizado pelo toque
Fernanda Bianchini Saad fundou a Associação Fernanda Bianchini e Cia Ballet de Cegos. O projeto começou na Vila Mariana, em São Paulo, com cinco alunos e, hoje, conta com mais de 300, que usam a dança para aprimorar a memória, foco e entendimento corporal.
Saad desenvolveu um método de ensino por meio do toque. Enquanto a professora realiza os movimentos, as alunas a tateiam para saber a posição exata das mãos e pernas.
A aluna Marina Guimarães diz que a dança traz autoconfiança, superação, disciplina e foco para pessoas com deficiência ou não. Guimarães conheceu o balé no Instituto de Cegos Padre Chico, no Ipiranga, onde estudava, lugar no qual Saad começou a ensinar pessoas com deficiência visual. Apesar de não saber o que era balé anteriormente, aceitou o convite para fazer as aulas e nunca mais parou.
Todas as alunas do grupo cursam as aulas de forma gratuita. Dessa forma, dependem da verba proveniente dos espetáculos, como o que ocorreu no dia 12 de outubro de 2017 no Teatro Municipal de São Paulo, e também de doações e do programa “Adote uma Bailarina”, em que uma madrinha arca com os custos de um aluna.
Um som que aguça a percepção
“Conseguimos entender no mesmo nível de quem vê. A narração se encaixa bem entre as cenas e não atrapalha”, afirma Marco Antonio Bertolli, possuidor de baixa visão, que estava acompanhado da colega Kátia Chimabokuro, portadora de deficiência visual, a apresentação de balé da Associação Fernanda Bianchini – Cia Ballet de Cegos. Ambos utilizam o recurso há mais de 10 anos. Chimabokuro afirma que a narração feita é bastante informativa e se contenta ao dizer que, finalmente, consegue prestigiar espetáculos de ópera, antes impossível sem o recurso.
No evento, a empresa Ver com Palavras, fundada e dirigida por Lívia Motta, providenciou o recurso da audiodescrição. Motta foi uma das pioneiras no campo, logo em 2006 teve seu primeiro trabalho oficial na área com a audiodescrição da peça “O Santo e a Porca”, em São Paulo. A empresa já realizou a descrição de diversos eventos, de espetáculos culturais até partos e casamentos.
A audiodescrição usa a mesma lógica da tradução simultânea, auxiliando a pessoa com deficiência visual a construir, por meio de uma narrativa descritiva adicional, cenas ou situações antes acessíveis somente pela visão. Ela beneficia além de pessoas com deficência visual, pessoas com deficiência intelectual, autistas, disléxicos, pessoas com déficit de atenção e até mesmo idosos.
No campo audiovisual, a Agência Nacional do Cinema (Ancine), entidade vinculada ao Ministério da Cultura, possui, desde dezembro de 2014, norma que estabelece que todos os projetos de produção audiovisual financiados com recursos públicos federais geridos pela agência deverão contemplar nos seus orçamentos serviços de legendagem descritiva, audiodescrição e Libras e enviar uma cópia para a Cinemateca Brasileira para ser documentada. A Ancine também editou a Instrução Normativa nº128/2016, em setembro de 2016, que atenta para a necessidade da apresentação de obras nacionais e estrangeiras da audiodescrição e de Libras em salas de cinema.
Dois toques, infinitas possibilidades
Gleison Fernandes de Faria tem paralisia cerebral. Quando cursava Ciências da Computação tinha que usar um recurso apelidado de Tamanduá para digitar no computador. A ferramenta, que é presa à cabeça e possui uma haste longa e curvada, é incômoda e não é de fácil manejo. Dessa maneira, Faria teve a ideia de criar um teclado inteligente que facilita a digitação de quem tem limitações com as mãos. A Geraes Tecnologia Assistiva gostou da ideia e decidiu fabricá-lo, nomeando-o de TiX, um teclado combinatório e sensível ao toque que realiza todas as funções necessárias ao usar um computador, do mouse ao teclado.
O teclado custa dois mil e quinhentos reais, sendo útil para pessoas que tenham paralisia cerebral, traumas medulares, Parkinson e outras limitações motoras. Adriano Rabelo, colaborador da Geraes Tecnologia, explica que o teclado, composto por 11 teclas coloridas, funciona a partir de uma lógica combinatória: para digitar, basta tocar duas teclas seguidas, sendo que o próprio painel indica todas as sequências. Por exemplo, para digitar a letra “A”, basta apertar a tecla azul seguida da amarela, havendo ainda um preditor de texto para economizar toques.
Mais do que isso, o teclado pode ser usado apenas com o piscar dos olhos. Por meio de um óculos com sensores de pálpebra a-blinX, a pessoa com deficiência motora severa consegue controlar o computador sem precisar tocar nas teclas.
As Cores da inclusão
Tintas vibrantes florescem nas pinturas de Jefferson Figueira. Um cenário, aos poucos, é delineado com maestria por meio do pincel conduzido pela boca. Após ter reagido a um assalto, o atual pintor levou um tiro no pescoço e sofreu uma lesão medular, que o tornou tetraplégico. Hoje, Figueira faz parte do grupo de Pintores com a Boca e os Pés, que possui mais de 900 artistas com deficiência motora espalhados pelo mundo inteiro.
A sede da instituição fica na Suíça, para onde são enviados diversos quadros a serem avaliados por especialistas. Assim, os escolhidos são transformados em cartões-postais, quadros, canecas, dentre outras peças decorativas para venda. “Temos que comprovar a qualidade de nosso trabalho, é preciso avaliar a arte pela arte. Não para causar comoção”, afirma o pintor que conheceu o grupo por meio de um colega de trabalho. Figueira completa que expor as obras é de suma importância, uma vez que assim se torna possível levar para outras pessoas, com ou sem deficiência, o conhecimento sobre a atividade. Ele também destaca que é por meio da exposição e venda dos produtos confeccionados que os artistas adquirem sua independência, já que, ao participar do grupo, eles têm direito a um salário.
Cidade sem sinalização
Em são paulo, só existem oito semáforos sonoros disponíveis. O arquiteto da Prefeitura e Secretário Executivo da Comissão Permanente da Acessibilidade (CPA), João Carlos da Silva, conta que o projeto de semáforos sonoros está em estado de pesquisa há dois anos. O secretário também revela que a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e a Secretaria da Pessoa com Deficiência buscam soluções para as falhas de tais semáforos. Por meio do uso de modelos-teste, diferentes entre si, espalhados pelo Centro da cidade (Largo do Patriarca, 25 de Março, Barra Funda) foram chamadas várias pessoas com deficiência visual para fazerem uma avaliação por grupo para definir qual o melhor modelo para a cidade. A conclusão foi a de que nenhum dos modelos atendia a todas as demandas.
Para Valmir de Souza, criador do aplicativo Biomob e Conselheiro Municipal de Transporte e Trânsito de São Paulo, “a sociedade ainda não se conscientizou sobre as minorias e para quem tem dificuldade”. Ele completa que muitos municípios impõem barreiras por acharem que o som do semáforo irá incomodar, como fazer um som estridente durante a madrugada. Com a intenção de melhorar a acessibilidade, Souza criou o app que encontra estabelecimentos com acessibilidade por meio do transporte público. O criador do Biomob, disponível na Apple Store e Google Play gratuitamente, ainda completa que no Brasil, um país com 13 milhões de cadeirantes, não são as pessoas que possuem deficiência, mas as cidades.
Rodas radicais
Lúcio Oliveto Alves, diretor comercial do Kit Livre, conta que a empresa surgiu a partir da dissertação de mestrado de Engenharia Mecânica de seu irmão em 2014. O projeto era uma ferramenta que, acoplada à cadeira de rodas, aumentava a mobilidade, transformando-a em um triciclo. Segundo ele, o triciclo proporciona mais autonomia e liberdade ao cadeirante, trazendo um novo conceito de cadeira de rodas.
Pedro Henrique, o Pedrinho BackFlip, mudou sua maneira de locomoção com o Kit Livre. Ele perdeu a movimentação dos membros inferiores após um acidente de moto, mas definiu para si que não pararia de realizar as atividades que fazia antes do acidente, assim como sua faculdade de Educação Física. Orgulhoso de ser o segundo cadeirante no mundo a dar um backflip (mortal), o skatista pratica diversas manobras em cadeira de rodas na pista de skate, além de utilizar o Kit Livre em atividades radicais, trilhas e locomoção pela cidade.
Os modelos custam de cinco mil a 12 mil reais, possibilitando uma locomoção de até 50 quilômetros por hora. Há modelos desenvolvidos majoritariamente para o uso esportivo, como no Radcross, esporte que envolve obstáculos e velocidade para cadeirantes. Além disso, cada triciclo pode ser adaptado de acordo com a necessidade do cadeirante, como para Eduardo Júnior, que também não mexe totalmente as mãos e que, com o Kit Livre, admite: “Agora vou para todo lugar, para a faculdade, pulo rampa e até já fiz trilha de 70 quilômetros”.