Cursinho popular em São Paulo prepara população transexual para o Enem
Os papéis coloridos no mural da ONG Ação Educativa, no Centro de São Paulo, indicam o nome e o gênero das pessoas que ocupam aquela sala de aula em busca de aprendizado. Rafaella é ela. Luy é ele. Max é elx. O Cursinho Popular Transformação busca, por meio do acolhimento, preparar travestis e transexuais para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Criado em janeiro de 2015 durante o III Curso de Formação Política LGBT, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estudantes e ativistas de diversas partes do país discutiram sobre a marginalização da população transexual e travesti na sociedade brasileira, chegando à conclusão de que o acesso e a permanência em espaços de educação formal para essa população representam um dos maiores obstáculos, e ainda corrobora para a ausência de oportunidade no mercado de trabalho.
De acordo com o defensor público João Paulo Carvalho Dias, em 2016, 82% da população de trangêneros e travestis deixou a escola. Para Rafaella Rodrigues da Silva, de 28 anos, a sala de aula também não foi fácil, mas “os estudos gritavam mais alto do que essas pessoas que me ofendiam”. A moradora do bairro do Itaim Paulista, na Zona Leste, se descobriu transexual no ano passado. Desde então, vive uma vida dupla, pois ainda não se assumiu para seus pais. Eles pensam que ela é um homem homossexual cisgênero – indivíduo que se identifica com o gênero imposto no nascimento. Ela sai de casa sem as roupas que contemplam sua identidade e se troca no caminho para onde estiver indo. Durante a volta para o lar, desmonta o seu visual feminino.
Já Luise Fernandes, de 18 anos, fugiu de sua casa em Brasília por causa do preconceito e veio para a capital paulista, em novembro de 2016. Cursando o terceiro ano do ensino médio e se mantendo pela pensão de seu pai, a jovem transexual relata que a escola resistiu em aceitar seu nome social e também a orientaram a usar o banheiro dos funcionários. No Transformação, a realidade é outra. “Hoje, o professor errou o meu pronome por um descuido e depois ficou todo sentimental. Eles têm toda uma delicadeza para falar com a gente. É um lugar de muito acolhimento”, afirma.
Considerável parte dos transgêneros vivem marginalizados. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), de 2013, mostram que aproximadamente 90% dessa população sobrevive da prostituição e sua expectativa de vida é de 35 anos. A solução encontrada pelos coordenadores do cursinho para tornar possível a permanência dessas pessoas nas salas de aula foi estabelecer uma parceria com o Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), garantindo o transporte e a alimentação de quinze participantes.
“Para que você lide com a aula de uma maneira mais fechada e objetiva, é preciso que você tenha alguns acessos anteriores que te possibilitem ter essa vivência de imersão em estudo sem se preocupar com outra coisa”, conta a arquiteta Magô Tonhon, que tem como linha de pesquisa de seu mestrado, em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP), a trajetória de pessoas transexuais na educação, tendo como objeto de estudo os estudantes do Transformação. Em seu trabalho, é confirmado que as pessoas trans entrevistadas tiveram uma relação de difícil permanência no ambiente escolar. Dessa forma, a proposta de metodologia do cursinho procura ser diferente do ensino tradicional.
De segunda a quinta-feira, são dadas todas as matérias que caem no Enem de forma diferenciada, buscando mesclar o conteúdo ensinado em sala de aula com uma oficina prática. Por exemplo, para aprofundar o conteúdo sobre as obras do autor Machado de Assis, o voluntário Franco Francisco, de 28 anos, realizou um workshop sobre linguagem e arte, indagando o que seria comunicação a partir da HQ do conto “A Cartomante”. “O método de ensino também questiona o modelo atual, por meio de debates e conversas, onde pude esclarecer dúvidas e ganhar conhecimento”, conta Amanda Paschoal, estudante de Gestão de Turismo, no Instituto Federal de São Paulo, e ex-aluna e atual coordenadora do Transformação.
Desde 2014, o Enem começou o atendimento pelo nome social. Mas ingressar no ensino superiornão é somente a realização de um sonho, mas uma nova batalha. “É desconstruir a ideia de que pessoas trans e travestis só se prostituem”, afirma Rafaella Rodrigues que, no dia da entrevista, resolveu não tirar o batom vermelho, a maquiagem roxa, os brincos e o turbante colorido para retornar a seu lar.